 David Mourão-Ferreira, nascido em 1927 e falecido em 1996, é uma das
mais fascinantes e multifacetadas personalidades literárias do século
XX. Pela qualidade da sua inteligência, pela amplitude da sua
imaginação, pelo fascínio da sua presença, pelo palpitante pulsar da sua
escrita sedutora, configurada em todos os géneros literários: poeta,
romancista, novelista, contista, dramaturgo, ensaísta, cronista,
tradutor, crítico literário, conferencista, actor e professor. Foi
também uma das mais mediáticas figuras da divulgação da literatura
nacional e estrangeira, na rádio e na televisão, onde apresentou
variados programas, sendo o mais conhecido Imagens da Poesia Europeia, que manteve ao longo de 135 emissões, entre Julho de 1969 e Maio de 1974.
O seu magistério, no ensino secundário e universitário, marcou
sucessivas gerações de estudan-tes, muitos dos quais se contam hoje
entre as figuras mais prestigiadas da universidade portuguesa e do
ensaísmo literário. David, ainda assistente, elabora o programa da então
recém-criada cadeira de Teoria da Literatura, na Faculdade de Letras de
Lisboa, e desenvolve, ainda na década de cinquenta, estudos pioneiros,
entre nós, sobre o new criticism e os forma-listas russos, ao mesmo tempo que pugna pelo aprofundamento do estudo das poéticas clássicas.
Viria também a desempenhar funções políticas como secretário de Estado
da Cultura, a seguir à revolução dos cravos, mais precisamente entre
1976 e 1979, sendo, à data da morte, além de professor catedrático
convidado, da Faculdade de Letras de Lisboa, director do Serviço de
Bibliotecas da Fundação Calouste Gulbenkian, aí dirigindo também a mais
prestigiada revista portuguesa de estudos literários — Colóquio-Letras. David publica os seus primeiros artigos, em 1942, no jornal Gente Moça,
orgão dos estudantes do Colégio Moderno, dirigido por João Soares, pai
de Mário Soares, que também colaborava naquele jornal, nomeadamente como
crítico de cinema. As primeiras poesias viriam à luz nas prestigiadas
páginas da Seara Nova, em 1945, graças ao contacto que mantinha
com os seareiros, entre os quais se contava seu pai, um dos fundadores
da revista, em 1921. Todavia, é pelo teatro que o seu nome começa a
aparecer com alguma regularidade nos jornais, em 1948, 1949 e 1950,
inicialmente como actor e depois como autor, no Teatro Estúdio do Salitre, onde David viu encenadas as suas peças Isolda e Contrabando,
respectivamente em 1948 e 1950. Ainda neste ano, funda com António
Manuel Couto Viana e Luís de Macedo, as folhas de poesia Távola Redonda,
em cujas edições daria à estampa o seu primeiro livro de poesia – A Secreta Viagem.
David Mourão-Ferreira não se limitou a ser um dos directores e
principal colaborador daquela revista, sendo, também, um dos seus mais
fecundos teorizadores, defendendo o equilíbrio, a coerência e a
proporção entre os motivos e a técnica, entre os temas e as formas,
procurando conciliar os valores da tradição e da modernidade,
revalorizando o lirismo, recusando a imediatez da inspiração e o
aprovei-tamento da poesia para fins utilitaristas, demarcando-se do
neo-realismo. Este ideário ver-se-ia plasmado na sua futura Obra, a
qual, do ponto de vista técnico, representa a feliz aliança da força
criadora e da construção rigorosa, sendo geralmente considerado como
detentor da melhor oficina poética da sua geração. Até à publicação de Um Amor Feliz,
em 1986, David insistia em dizer que tinha consciência de que a sua
Obra não teria um vasto público, mas que, em contrapartida, possuía
leitores fiéis. Este romance viria indiscutivelmente aumentar-lhe o
número desses leitores, pois ainda hoje continua a ser objecto de
sucessivas reedições. Num caderno de bolso, encontrei esta curiosa
síntese, escrita por David, no dia seguinte à conclusão do romance: “Um
Amor Feliz: um cântico de amor e de paixão erótica; uma sátira política
a certa nova sociedade portuguesa; um romance do romance em que se vêem
acareados o narrador e o autor; um ajuste de contas comigo mesmo.”
Se pensarmos que desde os dezoito anos deixara de lado sucessivos
romances inconclusos, entenderemos, talvez um pouco melhor, que contas
seriam aquelas, que assim ajustou. E, se atentarmos nas sucessivas
reedições da sua poesia, verificaremos que os volumes constituem
organismos vivos, coerentes, nos quais os diversos textos se
inter-respondem, contando “histórias” diferentes, consoante as
seriações que o autor lhes conferiu, em diversas edições, nomeadamente
nas recolhas poéticas, obedecendo a criteriosas reordenações poemáticas
em círculos (Lira de Bolso, As Lições do Fogo), ou em ciclos (Sonetos do Cativo),
jogando com a simbologia dos números quatro, sete e nove, de clara
reminiscência pitagórica, cabalística ou dantesca. O ritmo, a
musicalidade, a mestria das rimas assonantes, o superior domínio da
metáfora e da aliteração, coadjuvadas pela antítese, ou mesmo pelo
paradoxismo conferem uma personalidade singular à poesia davidiana, de
perfeito recorte clássico, obedecendo, todavia, a princípios sui generis
nomeadamente ao nível da metrificação, fazendo de David
Mourão-Ferreira, porventura, o mais clássico dos nossos poetas modernos.
David, tal como outros grandes criadores, não se deixou espartilhar em
cada um dos géneros literários configuradores da sua Obra. Ela
edifica-se sobre um complexo sistema de vasos comunicantes,
orquestrados pela memória interna da obra, em contraponto de
harmonizações sinfónicas ou diafónicas. Com efeito, os elementos
itinerantes constituem um dos aspectos mais interessantes da implícita
ou explícita rede comunicante, como é, por exemplo, o caso das obras
poética e ficcional Os Quatro Cantos do Tempo e As Quatro Estações, ou do poema intitulado «Romance das Mulheres de Lisboa no Regresso das Praias», cujo primeiro verso — “Em terra, tantas gaivotas!”
— inverte e subverte o título do seu primeiro volume de ficção
narrativa, considerado como de novelas, mas que resultou de um trabalho
de reconstrução de um anterior romance, razão por que certas
personagens transitam de umas narrativas para as outras, em completa
subversão da linearidade temporal do primitivo texto. O onirismo d’ Os Amantes e Outros Contos encontra-se inscrito em embrião n’ A Recordação de Panflakaio (1*): “Sonho que sonho o que sonho” é um verso da poesia “Argumento”, inserta em Os Ramos Os Remos, a qual traduz precisamente a situação onírica que sustenta a arquitectura do conto “Os Amantes”.
Conquanto seja o erotismo o filão mais reconhecido na Obra de David
Mourão-Ferreira, esta está longe de se reduzir àquela temática. Outras
linhas se entrecruzam na memória, na meditação sobre a morte, no culto
dos lugares, não apenas como sagradas relíquias do tempo, mas ainda
como espaços de reflexão do sujeito, em processo de perda. Parafraseando
um conhecido poema, de Matura Idade — “E por Vezes”— (justamente seleccionado como símbolo davidiano para a antologia Rosa do Mundo-2001 Poemas para o Futuro2*),
a angústia torna-se obsidiante imagem de fundo, que traz para o
primeiro plano um sujeito que se vê através do olhar feminino e que, por
vezes, se encontra e que, por vezes, se perde. Tântalo que não sacia a
sede — destino que um deus lhe segredou. Fulguração do instante,
revolta pelo fogo que se extingue, que não dura, mas que resiste, sendo
apenas o que resta do desejo de eternidade. Na poesia davidiana, tal
como a leio, o sujeito não ama porque existe, mas para que exista. E
existe para sentir, por vezes, o prazer de se dissolver e ciclicamente
renascer. As formas de diluição no mar – água primordial, por vezes
metáfora da mãe e memória do tempo antes do tempo, ou as formas de
diluição em terra — evasão, viagem, mudança — serão ainda uma outra
forma de perdição e renascimento de quem se procura procurando, por
vezes ganhando e, por vezes, perdendo ao jogo da vida. Condição trágica
de quem ironicamente fica preso à busca da liberdade, como um Ícaro
condenado aos trabalhos de Sísifo: “há-de tudo prender-se aereamente solto”, lemos na “Ars Poetica”, inserta no livro Do Tempo ao Coração. Os Ramos Os Remos
inscrevem a partir do título a fixidez e a flutuação. Ramos da árvore
que prende, remos do barco que deriva. De uma outra forma, mais
directa, de acordo com o registo escolhido, o sujeito assumirá a
condição de errância em Jogo de Espelhos: “Sente-se, desde sempre, mais estável no movente que no fixo”. (fragmento II). Talvez por isso, David deixa em “Testamento” a fuidez do verbo, a instabilidade do sentido, o calor da lava e o frio da cinza. O nada transmutado em tudo, o nada retomando a cor do infinito na Ladainha dos Póstumos Natais. David, “lúdico mesmo quando lúcido; e vice-versa”, conforme a sua lapidar auto-caracterização, deixa-se a si mesmo como herança, nas pregas dos textos, nas manhas da escrita, nas malhas da Obra. Não por acaso, Ulisses é um dos seus heróis de estimação, conforme nos diz em Discurso Directo. A manha de fingir que está a fingir, própria de quem pretende ser levado a sério, por não se levar muito a sério, assoma frequentemente em certas entrevistas, nomeadamente numa, assaz curiosa, publicada n’ O Século Ilustrado, com data de 30 de Novembro de 1957. David tem exactamente trinta anos e é já apresentado com a responsabilidade de uma reputação: “dramaturgo, poeta, crítico literário, produtor de televisão, espírito culto e esclarecido de verdadeiro intelectual do nosso tempo”. Esperar-se-iam, pois, respostas circunspectas a condizer com a solenidade da apresentação. Longe disso. Numa estratégia tipicamente davidiana, arrasa a solenidade e instaura a ambiguidade como norma de resposta. Tendo-lhe sido perguntado: — Se passasse à história, que cognome gostaria de ter? — David, com displicência, mas também com avidez, dá esta resposta : — Eu queria lá saber do cognome!. E logo depois: — Qual é a sua maior qualidade? — Não digo. É segredo... — E o seu maior defeito? — Idem. — Que pensa de si? — Mais secreto ainda! — E dos outros que pensam mal de si? —Penso que pensariam um pouco pior, se por acaso soubessem o que eu próprio penso. Mas como se trata de segredos... não lhes posso dar esse pequeno gosto.”— Se não fosse o que é, o que gostaria de ser? — Teimaria em ser o que sou. — E o defeito que mais detesta? — A suficiência. A auto-ironia é, de facto, a melhor arma de arremesso contra as convenções. Perante a inevitável pergunta — O que pensa das mulheres? — dá esta curiosa resposta : — Que nos impedem de pensar. E ainda bem! — E que pensa dos homens? — Que não são coisa em que se pense.  Esta é uma das facetas não despiciendas da personalidade de David Mourão-Ferreira: a faceta de provocador, a qual, aliada à sua proverbial fama de sedutor, lhe criaram um público fiel, e legiões de admiradoras, que, diga-se em abono da verdade, lhe retiraram concentração para terminar muitos projectos literários. A correspondência, por ele recebida e guardada, ultrapassa os onze mil espécimes, e nela encontro abundantes exemplares dessa fervorosa, mítica e, por vezes, ingénua admiração. Mas, é evidente que não é isso o que importa descobrir num acervo literário. Ao longo dos sete anos em que me ocupo da organização dos seus papéis, fui adquirindo a certeza de que, tal como uma casa se edifica, se houver plano prévio, materiais de construção e mão-de-obra adequada, também a personagem-escritor é produto de uma construção, que está longe de ser obra de acaso, em David Mourão-Ferreira. Quando David nasceu, seu pai era secretário de Jaime Cortesão, ao tempo director da Biblioteca Nacional de Lisboa. Lemos em Jogo de Espelhos(3*): “A primeira palavra «difícil» que saboreadamente aprendeu: biblioteca.” É caso para dizer que a saboreou e aprendeu muito bem, porque em David o amor aos livros constituiu, certamente, uma das mais genuínas formas de amor que experienciou. David foi, sem dúvida, um leitor precoce. Aos onze anos lia Júlio Dinis. Efectivamente, numa agenda de 1938, encontro registadas as suas impressões sobre a Morgadinha dos Canaviais. Numa agenda do ano seguinte, encontrei quarenta e sete títulos anotados, entre eles, de novo, Júlio Dinis — As Pupilas do Senhor Reitor, Contos de Shakespeare, a tradução de Eça de Queiroz d’As Minas de Salomão ( Rider Hagart), Alexandre Dumas — Os Três Mosqueteiros e Vinte Anos depois, Bernardin de Saint-Pierre — Paulo e Virgínia, Camilo Castelo Branco — Vinte Horas de Liteira e Noites de Lamego, para além dos habituais títulos de aventuras de Jules Verne e Salgari. São curiosas as suas notas de leitura, como tirocínio do futuro ensaísta. Vejam-se alguns dos seus pontos de vista sobre Júlio Dinis, escritos aos quinze anos, intitulados «O Idealismo de Júlio Diniz»(4*) “ Uma interessante particularidade dos livros de Júlio Diniz é a ânsia de perfeição social que transparece em todos eles. A circunstância dos romances deste autor “acabarem bem” talvez seja explicável por esta razão. O facultativo Joaquim Guilherme Gomes Coelho era um idealista, e esse seu idealismo levava-o a preconizar uma era sem rivalidades entre pobres e ricos (A Morgadinha dos Canaviais) ou entre a classe trabalhadora e a aristocrática (Os Fidalgos da Casa Mourisca). O caso de As Pupilas do Senhor Reitor e Uma Família Inglesa é outro; a ideação destes romances é inferior, e eles valem sobretudo pelo descritivo e pela psico-análise que encerram. (...) E já se me afigurou a possibilidade, de ter Júlio Diniz encarnado nas personagens irreais figuras da realidade ou que o autor preconizava virem a existir de futuro. E se não vejamos: não será Maurício, o protótipo do rapaz da época, pensando só nos folguedos, galanterias e caçadas, sem se preocupar com a casa paterna, em ruínas – que simbolicamente pode muito bem ser que represente o Portugal de então, governado por um frade, isto é, pela Igreja – ; e Jorge, o jovem ideal para a ingente tarefa de reorganizar a nação? Contudo, a princípio, os métodos empregados pelo novo governante não agradam à geração anterior (D. Luiz, o velho fidalgo). E não agradam porquê? Porque o orgulho do senil aristocrata vê-se amachucado perante a decisão que o filho toma de afastar o gastrónomo e despreocupado frade, trazendo para o seu lado, em vez dele, a classe traba-lhadora, encarnada em Tomé da Póvoa.” Numa época em que os jovens estão cada mais desviados da leitura poderemos perguntar como é que se faz para se pensar e se escrever assim aos quinze anos. Neste campo, os Mestres têm uma palavra, de não pequena importância, a dizer. No caso de David há, sem dúvida, um Mestre — Teófilo Júnior — cuja influência seria decisiva para o futuro escritor, apesar de o contacto entre ambos ter terminado quando David tinha apenas doze anos. Na agenda de 1939, o jovem aluno assinala a sua morte repentina, e, dois anos mais tarde, viria por ele a ser comovidamente evocado, num texto datado de 15 de Dezembro de 1941, e que se inicia com estas palavras: “Ainda não se apagou e jamais se apagará, decerto, a recordação deste ilustre professor. Este artigo é a singela homenagem dum aluno ao seu mestre.” David conta como este licenciado em Românicas se viu demitido do seu posto no Liceu Passos Manuel, em Lisboa, por motivos políticos, sendo obrigado a dar aulas particulares para sobreviver. David foi um dos seus alunos e a admiração intelectual e humana que lhe dedicava deixou-a estampada nestas palavras: “Ensinava com a mesma facilidade e aptidão as letras ou as ciências. Uma vez, no segundo ano, leu-nos o «Bispo Negro» das Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano. Ficámos eu e os meus colegas encantados. Aquelas descrições da igreja e dos perso-nagens da narrativa ficaram-me gravadas na memória. Mais tarde quando reli o conto achei certas narrações um pouco monótonas... Era este um dos dotes do sr. Dr. Teófilo Júnior: saber ler como poucos (...).” Não é difícil concluir quem ensinou o jovem a ler, também ele, exemplarmente. David foi actor amador, com relativo sucesso na época e a paixão pelo Teatro vem-lhe também da infância e ainda de Mestre Teófilo. Veja-se o que diz sobre isso: “Tinha uma predilecção especial pelo teatro. Para ele o Frei Luís de Sousa seria muito melhor se apenas tivesse os dois primeiros actos. O terceiro, é, dizia, para armar ao sentimento.” Um Mestre que não se coibia de criticar um dos monstros sagrados do nosso Teatro seria, inevitavelmente, um dos melhores exemplos de independência intelectual que o jovem poderia ter na infância. Encontramos aqui, possivelmente, uma das fontes da segurança interpretativa que David demonstra, desde muito cedo, e uma apetência para a aprendizagem pessoal, em desfavor do ensino institucional. Rara é a criança que, no reino do “faz de conta”, não escreve e ilustra pequenas histórias, que mais não seja, para responder a solicitações escolares. Todavia, raras são as crianças, que, fora dessas mesma solicitações escolares, criam um universo lúdico, perfeitamente autónomo, no qual encenam a personagem de um escritor. Foi este último, o caso de David Mourão-Ferreira, cujo nome, nesse tempo, ainda não tinha agregado o hífen, parte integrante da construção da sua personagem-escritor, e simbólico traço de união familiar entre as figuras materna e paterna, com uma acutilância e pertinência que em muito ultrapassa a interpretação que muitas vezes lhe foi feita, como indiciante de fatuidade e exibição. Nesta opção funciona ainda outro modelo: o hífen do nome do escritor Teixeira-Gomes, que lera integralmente aos dezassete anos.
A figura paterna tem, como não podia deixar de ser, uma extraordinária importância, a vários níveis, a começar pelo cuidado de preservação e datação destas pequenas peças da juvenilia, que nos mostram os primeiros passos do que, sem o saber ainda, se encena já como futuro escritor. David |  referiu-se algumas vezes a estas suas “produções”, mas, na verdade, o escritor tem sempre pudor em chamar a atenção do público para materiais desta espécie, a menos que o faça sob o signo de uma velada ironia, como o fez Umberto Eco em Sulla Letteratura (5*). No último capítulo deste livro – «Como Escrevo» – o autor de O Nome da Rosa assume claramente o seu passado criativo infanto-juvenil, mesclando-o com o conveniente distanciamento crítico, mas, ainda assim, dizendo que alguns temas dos seus futuros livros se encontravam já seminalmente nessas formas da juventude: “Como autor de obras narrativas sou um sujeito bastante anómalo. De facto comecei a escrever contos e romances entre os oito e os quinze anos, depois parei, para recomeçar só no limiar dos cinquenta. (...) Pegava num caderno, e escrevia o frontispício. O título era de tipo salgariano, porque eram essas as minhas fontes (...) Escrevia em baixo o nome do editor, (...) depois procedia a colocar de dez em dez páginas uma ilustração, do tipo das de Della Valle ou Amato para as edições Salgari. Umberto Eco é cinco anos mais novo do que David Mourão-Ferreira, e, por isso, não nos espantaremos que as aventuras de Sandokan e a obra de Salgari tenham sido leitura comum. O que é mais curioso é que ambos se divertissem a “editar” os textos que escreviam, organizando-os com formato de livro, fabricando memórias que, no futuro, enquanto escritores, não desdenhariam recordar. No caso do pequeno David, este corta as folhas em pequenas dimensões, pagina-as, fabrica-lhes uma capa, cose-as ou prende-as com alfinetes, no local da dobra, inventa-lhes uma editora, indica-lhes o preço e nomeia inclusivamente “Outras obras do autor”. Por tudo isto, não hesito em designar esta actividade como criação da personagem-escritor. Enquanto outros jogavam aos polícias e ladrões na rua, David joga também nestes textos aos polícias e ladrões, mas com uma considerável diferença: por interposta criação de linguagem, criando um duplo ludismo, desenvolvendo duplamente a imaginação criadora, com os resultados que o futuro haveria de mostrar. Umberto Eco não se inibe em referenciar essas suas actividades infantis, porque conhece e reconhece que os mecanismos da criatividade do futuro escritor não nascem ex-nihilo, os quais nos vêm provar como pode ser determinante, na infância, o contacto com todas as fontes e formas de desenvolvimento da escrita, provando também a imensa responsabilidade de todos os agentes de ensino, sejam eles pais, professores, escritores infanto-juvenis ou instituições educativas, no sentido de priorizarem a motivação, não só para a leitura, mas também para estas práticas de escrita criativa, o mais cedo possível. Um outro monstro sagrado da cultura europeia – Jean Paul Sartre – também não desdenhou analisar meticulosa-mente as suas produções da juvenilia, em entrevista conduzida por Simone de Beauvoir e por esta publicada6 no ano seguinte à morte do escritor. Muitos outros casos semelhantes poderiam ser referidos.  A construção da personagem-escritor é, com efeito, um processo lento, gradual e marcado por uma convicção algo determinista, que ele designa por “fatalidade”, não sem alguma ironia. David levava muito a sério esta actividade para-literária da sua infância e dedicou-lhes algumas referências na série de vinte cadernos que constituem o Diário Íntimo, a primeira das quais, na entrada de 4 de Abril de 1947: “Ontem à noite não saí. Estivemos todos reunidos, a ver retratos e papéis antigos. (...) Evidentemente que aqui de mim para mim, não tenho necessidade nem quero, armar ao menino-prodígio. Mas a verdade é que há ali coisas que já me definem: uma maneira de escrever simples, oral, uns diálogos cheios de naturalidade, a preocupação da técnica de Teatro (todas as rubricas das pecinhas se encontram, ou entre parêntesis ou numa letra diferente). E não só isto. A mania de fazer de cada obra um espécie de livro, com o nome do autor, o título da obra, a edição, o preço, e depois na contra-capa a referência a outras obras do autor. No romance de aventuras que intitulara Pequenos Detectives, verifiquei uma infame imitação dum livrito que meu irmão e eu muito lemos, quando éramos pequenos: Emílio e os Detectives. Mas esta necessidade íntima de, acabado de ler um livro, tentar fazer um, inconscientemente semelhante, esta necessidade não quererá dizer qualquer coisa? Eu tinha que ser escritor. Eu tenho que ser escritor! Isto é para mim iniludível e claro. Tenho vinte anos, imensas deficiências culturais, muitas coisas de pura adolescência, mas apesar de tudo eu tenho um passado literário. Quando eu, meu irmão, meus primos e outros amigalhaços brincávamos às seitas, às guerras, aos países – aquilo, a mim não me bastava. Acabadas as brincadeiras, ou no meio delas, eu agarrava num pedaço de papel, escrevia um título e, cedendo aos interesses dos outros, escrevia num jornal, onde se narravam – sempre alteradas ! – as aventuras  tidas. E, depois, mais tarde, quando fomos com os nossos Pais fazer algumas viagens pelo país – o ver coisas não me era suficiente. E lembro-me de pedir papel nos Hotéis onde estávamos, para escrever sobre as personagens vistas, os monumentos, as cidades.” Uma outra dessas evocações da escrita da infância afigura-se-me particularmente significativa por ter sido feita imediatamente após a publicação do seu primeiro livro. Tal evocação deixou-a registada no Diário Íntimo (caderno 15): 8 de Dezembro de 1950 (8 horas da tarde, em casa): “Acabo de colocar, na estante, um exemplar de A Secreta Viagem. E é emocionante ver, daqui, uma lombada com o título – e o meu nome.” Em 9 de Dezembro de 1950 (meio-dia, Café- Cervejaria Bocage): ” O meu primeiro livro está publicado: realizado, assim, um dos meus sonhos mais  antigos, persistentes e íntimos. De há quantos anos? De há dezasseis anos, pelo menos. Aos sete, que me lembre, escrevi o meu “primeiro livro”: andava eu na segunda classe; era um livro de leitura para a primeira classe... (Atracção didáctica...). Escrevi-o em formato de livro e com as necessárias indicações: edição, outras obras do autor, data etc. Precocidade? Fatalidade. E, sem dúvida, um prematuro cabotinismo, de certa espécie e muito íntimo– sem o qual de resto, não pode passar nenhum artista (ao que penso).” Observe-se como estas considerações deixam o jovem pouco à vontade, alegando em sua defesa tratar-se de um fenómeno inerente à condição de artista, condição de que, nem por sombras, duvida, aos vinte e três anos e apenas com um livro publicado. Perguntamos nós se, tal segurança, não advém, precisamente, do facto de “ter um passado” ou de julgar tê-lo, como autor. Um desses livrinhos, a que por diversas vezes fez referência, intitulado As Pérolas Perdidas foi, efectivamente, perdido pelo autor, no Colégio Moderno, que então frequentava. Alguém, que o achou, entregou-o no gabinete do Director- O Dr. João Soares –, que mandou chamar o jovem autor, perguntando-lhe se aquilo era obra sua. Tendo-lhe sido respondido afirmativamente, o Dr. João Soares teceu-lhes os maiores elogios e incentivou-o a prosseguir. Terá sido, segundo David, este incentivo, o primeiro que o autor recebera e um dos mais decisivos para a sua incipiente carreira. A provar a importância deste incentivos na infância, veja-se o que, aos vinte anos, regista no Diário: “O Dr. João Soares é das pessoas a quem mais devo em simpatia pessoal, amizade, incentivos de toda a ordem. A maneira como sempre me distinguiu é coisa que não posso esquecer e que só posso pagar, neste não-esquecimento. Foi ele a primeira pessoa que tomou a sério as minhas primícias literárias. E isto, que parece tão pouco, pode ter sido um caso entre muitos outros, isto enche-me a alma duma ilimitada gratidão, duma simpatia tão funda, como creio que não tenho nenhuma assim por mais ninguém.” (18 de Abril de 1947). Curiosamente, na sua última entrevista, em Maio de 1996, a duas semanas apenas da morte, é ainda o Dr. João Soares uma das personalidades  evocadas por David, exactamente a propósito dos textos da infância e do incentivo dele recebido. Último sinal de agradecimento, como quem completa um ciclo. Para auto-reforçar a vertente de “fatalidade” na construção da personagem-escritor, nada melhor que um teste feito oportunamente por um amigo filósofo – o Eugénio Cardigos. Veja-se o resultado, reportado na entrada de 15 de Outubro de 1952, do Diário Íntimo: “ O Cardigos submeteu-me há dias a um Questionário Caracteriológico de Gaston Berger, e acaba agora de me dizer o resultado: parece que, caracteriologicamente, me encontro aparentado com Baudelaire, Stendhal, Pöe, Verlaine... Mas que riquíssimos parentes!» Este comentário final sobre os “riquíssimos parentes” é muito posterior a 1952, provavelmente dos anos 80/ 90, conforme infiro pelo tipo de letra. Mas de nada lhe valeria aquilo a que designa por fatalidade, se não a tivesse coadjuvado pelo gosto da leitura. Para termos um ideia aproximada do seu interesse pela leitura, devo dizer que o levantamento que fiz das notas de referência a essas leituras, nos vinte cadernos do Diário Íntimo, mantido entre 1947 e 1955, comporta 250 nomes de autores lidos, num total de 704 comentários críticos, ou meras referências sobre esses mesmos autores. Podemos hoje afirmar com toda a segurança que, nos anos de formação de David, entre os 250 autores referenciados, os quinze que mais frequentemente leu e comentou são: Valéry, Stendhal, Proust, Gide, Montaigne, Baudelaire, Sartre, Shakespeare, Lawrence, Morgan, Huxley, Tolstoi, Pessoa, Régio, e Teixeira-Gomes. Terminarei por onde poderia ter começado: com o primeiro fragmento da segunda parte de Jogo de Espelhos: «Nasceu, sob o signo dos Peixes, numa casa de onde se avistava, até à barra, todo o estuário do Tejo. Nos olhos sobretudo lhe ficou o espectáculo dos barcos que partiam.»
O fio do horizonte do terraço da sua infância será, porventura, a outra margem do sonho, o que resta do que em nós resiste. Metáfora da busca da liberdade, afirmação do homem que nos livros aprendeu a ser livre. Nasceu no meio de livros. Viu da janela a liberdade do horizonte, mas podia ter fechado os olhos à paisagem. David escolheu olhar, escolheu ler. Assim o disse, ainda, em Jogo de Espelhos: “Livre, livro: diante desta semelhança, logo em pequeno desconfiou que não seria por acaso.”
(1*) Colóquio-Letras, 145-146- Julho-Dezembro de 1997, pp. 266-273. (2*) Rosa do Mundo- 2001 Poemas para o Futuro, Porto – 2001 – Lisboa, Assírio & Alvim, 2001. (3*) Jogo de Espelhos, Lisboa, Editorial Presença,1993: fragmento XII da segunda parte, intitulada Auto-Retrato – Primeiros Traços. (4*) Espólio de David Mourão-Ferreira: Nota crítica em folha solta (inéd.): 10 de Outubro de 1942. (5*) Milano, Bompiani R.C.S. Libri, 2002, com recente tradução portuguesa, Sobre Literatura, Lisboa, Difel, Fevereiro de 2003. (6*) Simone de Beauvoir, Cérémonie des Adieux, Paris, Éditions Gallimard, 1981. |