O texto que, em seguida se apresenta, constitui uma versão completa do capítulo intitulado «Um menino que não parece deste mundo…».(16*) Escrito no final de 1945, afigura-se-me muito interessante, como amostragem do que seria um romance de temática adolescentista, a que não é alheia a leitura da obra dos escritores presencistas e, muito particularmente, de Régio , eu, em 1945, publica o primeiro volume de A Velha Casa: Uma Gota de Sangue.
Teresa Martins Marques
.........................................................................................................
Há Dezenas de Caminhos…
«Um menino que não parece deste mundo…»(17*)
David Mourão-Ferreira (pp.13-16)

“Os pais de Afonso tinham-se casado pelo Natal e no Outono seguinte ele
nascera. Aquele filho, nascido a menos de um ano do matrimónio viera
dar a toda a família a esperança numa larga prole. Mas a fonte secara,
como que por encanto, após a primeira torrente...
Assim que
Afonso nasceu, a parteira achou-lhe seme-lhanças com o pai, decerto para
ser agradável ao senhor Sampaio; mas a avó materna afirmou desde logo
que o menino(18*) era a cara do seu defunto marido.(19*)
Nunca se chegou a conclusão alguma, e o menino foi crescendo, por entre
opiniões assim contra-ditórias. Contudo, havia um pormenor em que todos
estavam de acordo: o menino era fraquinho e nisso era tal qual o avô
António Luís, que morrera tuberculoso com pouco mais de trinta anos. E
durante muito tempo(20*) o grande problema foi aquele: o menino era fraquinho...
Não tinha ainda um ano, quando teve um forte ataque de tosse convulsa.
Sobreviera, depois, uma bronco-pneumonia. Ia sendo o fim! Durante uma
semana, todos o julgaram perdido. Todos — menos o pai e a mãe. Animado
duma fé quase religiosa nos médicos e nos remédios, o senhor Sampaio não
desanimava, tentava todos os meios, numa grande ânsia de salvar o seu
menino, o seu Afonso. D. Manuela, essa, não saía do pé do berço.
Embalava o menino, dava-lhe os remédios, ajeitava-lhe a almofadita de
rendas, que ela bordara em solteira, e às vezes erguia-o do pequeno
leito, tomava-o nos braços e olhava-o demora-damente, com os lábios
muito cerrados, os olhos muito fixos, a fazer esforços para não chorar.
Nem sempre se conseguia conter; e havia dias em que rebentava num grande
choro, silencioso, longo, que a deixava prostrada, mas que lhe dava ao
mesmo tempo um certo alívio.
E o menino salvou-se. A doença,
contudo, deixara a sua marca. Afonso foi crescendo, sempre fraquito,
sempre com falta de apetite, muito atreito a anginas e constipações.

Era muito esperto. Os pais até achavam que ele tinha coisas(21*),
que não eram próprias duma criança. A avó encontrara na vivacidade do
neto mais uma semelhança com o avô António Luís, que era um homem muito
inteligente, Deus o tivesse na sua santa guarda... Neste particular, o
senhor Sampaio achava(22*) que o filho era bastante parecido
com ele, senhor Sampaio, mas não o dizia com o receio de ser pouco
modesto. O tio Pedro, irmão de D. Manuela, costumava dizer:
—Tenho um sobrinho tão esperto que nem parece deste mundo...
E, rodeado daquela aura, Afonso foi crescendo. A avó faleceu, quando
ele tinha cinco anos. Um ano depois, o Tio Pedro partiu para o Brasil.
Mas todas as pessoas que o conheciam, mantinham a mesma opinião. Uma
amiga de D. Manuela que se chamava Ester e fazia versos com o pseudónimo
de “Giesta” afirmou certa vez:
— O teu filho, Manuela, não é
uma criança vulgar! Ainda há-de dar brado! Quando for para a escola, tu
vais ver! Vais ver como ele leva a palma a todos os outros!...
Aos sete anos, Afonso foi para a escola. D. Manuela ficou decepcionada.
Todos ficaram decepcionados, porque o menino nunca passou da mediania,
dos exercícios com “suficiente”, das referências pouco brilhantes.
Aparecia em casa com os calções rasgados, sempre todo sujo, e na escola
brigava com os outros meninos, por causa duma garota que se chamava Rita
e que lhe dera um dia uma pena de leite e uma estampa colorida....
Apaixonava-se facilmente por qualquer coisa; e tão depressa
coleccionava berlindes, como se empenhava em tremendas competições de
jogo do pião... Invejava os meninos que brincavam na rua e levava dias
inteiros a pedir à mãe que o deixasse ir para junto(23*) deles.
E ante as respostas sempre negativas, Afonso não tinha outro remédio
senão ficar na varanda, a olhar para eles, que jogavam ao eixo ou faziam
vogar barcos de papel, nos pequenos charcos, formados pelas águas da
chuva. (24*)
Quando andava na terceira classe, a
senhora professora mandou um bilhetinho ao senhor Sampaio, comunicando
que o menino Afonso faltava muito às aulas. O senhor Sampaio ficou
intrigado, mas não disse nada ao filho. E, uma manhã, seguiu-o, para ver
o que ele fazia. O garoto caminhava, mãos nos bolsos, a pasta entalada
entre o braço e o corpo, caminhava por entre ruas, como quem vai ao
acaso. Afastava-se de casa e da escola. Às vezes, parava. Depois,
continuava, assobiando e dando pontapés nas pedras. O senhor Sampaio, ao
ver que o destino do filho era aquele — ir sem destino— aproximou-se de
repente, agarrou-o por uma orelha e por um braço:
— Ó meu
patife, o que é que tu andas aqui a fazer? É para isto que eu pago a
escola?, é? Ora, vamos lá a ver se é para isto que eu pago a escola, meu
patife!...
E puxava-lhe as orelhas, dava-lhe pequenos tabefes
pelo rosto. Afonso ficara mais surpreendido do que amedrontado. Queria
dizer qualquer coisa, desculpar-se, explicar nem ele sabia o quê. Mas
não foi capaz. A sua atenção fixara-se estupidamente no pormenor duma
varanda: um ferro torcido, inclinado sobre a rua. Se aquele ferro
caísse...
O pai arrastava-o por um braço, a caminho de casa:
— A vadiar, hein! Começas cedo... É assim que os malandros se fazem. É
assim! Mas deixa estar: vais apanhar um castigo que te fica de emenda!
Tão certo!...
Afonso continuava calado. Às vezes olhava para
trás, para aquela varanda. Se aquele ferro caísse... Se aquele ferro
caísse...
O senhor Sampaio deu pela distracção do filho. Chamou-o à realidade com uma pequena bofetada.
— Para onde estás a olhar? Olha que eu estou a falar contigo!
Afonso esqueceu-se da varanda e do ferro torcido, inclinado sobre a
rua. Ia agora, de olhos no chão, a ouvir as palavras do pai:
— Se não te emendares, há a casa de correcção, há a cadeia...
Afonso achava injusto o pai falar-lhe assim. Teve vontade de protestar.
Mas sentiu um nó na garganta, qualquer coisa a apertar-lhe o pescoço e
começou a ver tudo(25*) embaciado, sem contornos definidos, a bailar por detrás das lágrimas que lhe saltavam dos olhos.
— Pai...
Os prédios pareciam oscilar, ondular. Afonso agarrou a mão do pai(26*) e apenas pôde dizer:
— Desculpe, pai, desculpe... Não foi por mal!
O senhor Sampaio atalhou-o, seco:
— Deixa-te de choros! As lágrimas não adiantam nada... Em casa, ajustaremos contas...
Em casa, houve mais ralhos, mais admoestações, mais choros. Por fim, resolveram interná-lo num Colégio.
Num domingo à noite, o senhor Sampaio mandou chamar um táxi pelo telefone. E depois de colocadas(27*)
duas malas, onde ia a roupa e os livros de Afonso, o carro pôs-se em
andamento a caminho de Benfica. Às escondidas do marido, D. Manuela dera
a Afonso um grande chocolate, que ele levava com mil precauções, no
bolso do sobretudo. Ao chegar ao Colégio, um prefeito alto e esgrouviado
indicou-lhe a camarata. Todos os alunos internos costumavam sair ao
sábado e só regressavam na segunda-feira de manhã. Por isso, a camarata
estava deserta. Afonso teve medo ao ver-se sozinho naquela casa grande,
cheia de camas brancas. O prefeito tinha dito:
— A sua cama é esta. Dispa-se.
Depois saíra. E Afonso sentou-se à beira do leito, a comer, sem
vontade, o chocolate que parecia não ter sabor. Foi-se despindo
vagarosamente. Deitou-se, apagou a luz. Mas o luar entrava pelas
vidraças e Afonso só via os vultos brancos das camas, a rodeá-lo como
fantasmas parados. Teve medo. Fechou os olhos. Via o pai a puxar-lhe as
orelhas, a mãe a olhá-lo com um ar triste, muito triste... O que
pensaria a mãe? Julgá-lo-ia também um vadio, por ele não ir à escola...?
Achá-lo-ia digno da casa de correcção... da cadeia, santo Deus!...?
Não, a mãe não podia pensar assim! A mãe até costumava repetir, com
bastante frequência, aquela frase do tio Pedro:
—Tenho um sobrinho tão esperto que nem parece deste mundo...
Ah! mas agora o tio Pedro estava longe!...Afonso já nem se lembrava bem
dele. E, sem saber por quê, começou a chorar, com o rosto encostado à
almofada.
Para que o tinham metido no Colégio, naquele casarão
grande, povoado de camas brancas, vazias, se ele não era deste mundo?
Sim!, porque ele não era deste mundo!, ele não podia ser deste mundo!
Continuava a chorar, repetindo de si para si que não era deste mundo, que não podia ser deste mundo…!(28*) E, por fim, já exausto, caiu num choro manso, monótono, pegajoso, chorando pelo gosto de chorar...”
2ª parte do capítulo
“Um menino que não parece deste mundo”
“Feito o exame, Afonso saiu do internato. Foi passar as férias grandes à quinta(29*)
duns parentes, na Beira Alta. E quando voltou, foi para o liceu. Nessa
altura, já eram bem poucas as pessoas que punham nele grandes
esperanças. Os pensamentos(30*) do senhor Sampaio acerca do
filho eram absolutamente impenetráveis. O senhor Sampaio tinha-se
tornado severo e, como ele dizia, andava sempre com a vista em cima do
Afonso. D. Manuela, essa, mostrava de vez em quando que ainda tinha
certas esperanças no menino. Mas era especialmente o tio (31*),
que mantinha as mesmas ideias sobre Afonso. E, sempre que vinha a talho
de foice, contava-lhe a angústia dos primeiros anos, repetia-lhe as
graças que ele fazia quando era pequeno:
— Andei muitas noites contigo ao colo... No corredor, dum lado para o outro, a ver se adormecias...
D(32*). Manuela dizia invariavelmente:
— Era um castigo, esse menino(33*)…, primeiro que dormisse...
O tio prosseguia:
— Mas eras muito engraçado. Tinhas coisas, que nem pareciam duma
criança... Eu, até costumava dizer: “Tenho um sobrinho que nem parece
deste mundo... Mas — coitadinho — tem tanto de esperto como de
doente...”
Ocultava sempre a última parte.
Talvez por
causa destas conversas, Afonso atravessou uma idade, em que andava
convencido que a sua existência sobre a terra fora um engano. E, quando o
pai o castigava, metia-se no quarto, chorava(34*) baixinho
durante muito tempo e amaldiçoava a sua sorte, aquela triste sorte que o
obrigava a andar num mundo que não era o seu... Às vezes,
surpreendia-se a pensar que o seu destino era viver entre deuses, num
estranho Olimpo. Mas logo afastava esta ideia. Achava-se, então,
estupidamente ridículo...”(35*) (1 de Dezembro de 1945).
(16*) Nalgumas listas vem identificado como primeiro capítulo, noutros como segundo e, noutros, foi excluído.
(17*)
Manuscrito autógrafo em suporte de papel azul de 25 linhas (30x20), com
razoável estado de conservação, apresentando algumas manchas
castanhas, legível, com algumas emendas, entrelinhamentos e cortes,
constituído por duas partes: a primeira — sem data, escrita a tinta
azul, no verso e no anverso, compreendendo duas folhas dobradas,
formando um total de 8 páginas, não numeradas e não assinadas, com a
seguinte identificação autoral: Capítulo II—UM MENINO QUE NÃO PARECE
DESTE MUNDO…; a segunda parte — constituída por 1 folha e duas páginas,
sem numeração, escritas a lápis, não-assinadas e datadas de1 de Dezembro
de 1945, com a seguinte identificação autoral: 2ª parte do capítulo “
Um menino que não parece deste mundo”. Na transcrição actualizou-se a
grafia. Manteve-se, todavia, a pontuação original.
(18*) Riscado: recém-nascido.
(19*) Riscadas, em parte, três linhas .
(20*) Riscado: anos.
(21*) Riscado: saídas.
(22*) Riscado: intimamente.
(23*) Riscado: brincar com.
(24*) Palavra cortada e ilegível.
(25*) Riscado: todas as coisas.
(26*) Riscado: com vontade de a beijar, mas.
(27*) Riscado: transportadas.
(28*) Riscado: tentando convencer-se dessa realidade indubitável.
(29*) Riscado: casa.
(30*) Riscado: As ideias.
(31*) Espaço em branco, seguido de vírgula.
(32*) Riscado: Dona.
(33*) Riscado: para ele.