(Ficção) Pois como a senhora há-de ter reparado, deixei passar toda a gente, fiquei para trás de propósito. Fui-me pondo de lado, nem estava nem deixava de estar na bicha, até ser o último da fila. Já nem sei como se deve dizer, agora diz-se muito fila. Deve ser das novelas, vem-nos logo à cabeça que bicha é palavra feia. Mas eu queria falar de outra coisa muito diferente, provavelmente vai parecer-lhe absurda. Foi por isso que fiquei para o fim, prefiro que não haja pessoas a ouvir, se bem que não é nada do outro mundo, estas coisas agora são o pão nosso de cada dia. Antes não fossem. Bom, é só isto: queria pedir-lhe uma dedicatória, mas não exactamente igual às outras - a senhora já fez hoje mais de quantas, deve estar com um calo nos dedos, de pegar na caneta. Só usa a caneta em ocasiões destas, julgo eu, habitualmente deve escrever no computador, como toda a gente. Eu já não era capaz de viver sem o computador, é a minha companhia. O computador e a televisão. Mas queria falar-lhe da dedicatória. Embora tenha um fraco pelo computador. É quase uma pessoa, não acha, ele responde, entende, repara se o que fazemos está certo ou errado, cumpre ordens, faz perguntas, liga-nos ao mundo - se bem que a mim o mundo me interessa pouco - e é esperto, até mais esperto do que nós. E tem sentido de humor, o sacana, ainda há pouco estava eu a jogar contra ele pela noite adiante, fico sempre a jogar pela noite adiante, ele estava-me a ganhar há várias horas, até parecia que me fintava, e aí eu perdi a cabeça e mandei-o à merda, desculpe mas foi a palavra, e sabe o que ele respondeu? Não posso ir nessa direcção. Tal e qual, com todas as letras. É uma resposta que não lembra ao diabo. Desatei a rir e ele desarmou-me a raiva, diga lá a senhora se alguém se lembraria de uma resposta destas, na ponta da língua, no momento exacto. Ganhou-me outra vez, está visto, e eu disse-lhe: Marca lá dois tentos, pá, sabes mais do que te ensinei. Um tipo destes nem lhe falta falar, já nasceu ensinado. Aos animais a gente ensina, tive um papagaio – mas a senhora está com pressa e não se deve interessar por papagaios, desculpe eu falar tanto, sei que às vezes falo demais, estou um bocadinho nervoso com o que vou pedir-lhe, mas acredito que me vai entender, a senhora entende bastante bem o ser humano, é por isso que gosto dos seus livros. Do que gosto mais é dos guarda-chuvas com a mulher ao fundo e do cavalo ao sol. Às vezes admiro-me como é que lhe vêem tantas coisas à cabeça, mas descanse que não lhe vou perguntar, porque não há tempo. A mim também me vêem muitas coisas à cabeça, só que não as sei escrever. Já experimentei, mas depois desisto, não tenho paciência. Ou talvez não tenha vocação. Embora a minha vida desse um romance. Ou um filme. Vejo-a até melhor como um filme: Começa com uma porta a bater e uma mulher que se vai embora. É uma mulher muito bonita, embora já não se possa ver, porque está do outro lado da porta. Levou uma mala com roupa e foi-se embora. Só com a roupa dela, não levou nada meu. Nem dinheiro, nem nada. Só o que era dela. Mas isso eu só vi depois, na altura não vi nada, atirei-me contra a porta, mas ela já lá não estava. Não a vi ir-se embora, ela foi quando eu tinha saído. Quando cheguei achei a casa vazia. Mas vejo-a sempre sair e fechar a porta atrás de si. Mesmo quando fecho os olhos continuo a vê-la, é como a cena de um filme: ela pega na mala, abre a porta e vai-se embora. E é então que penso: não pode ter sido só assim, a cena começa mais atrás. Primeiro, ela teve de fazer a mala, e, para isso, de abrir gavetas e armários, e ir tirando a roupa. Pode ter tirado e dobrado as peças, ou tê-las arrancado do armário penduradas nas cruzetas. A senhora já viu cenas destas em filmes, tenho a certeza. Reparou que nos filmes metem sempre na mala a roupa pendurada nas cruzetas? Não faz sentido, porque ocupa muito mais espaço, mas não é o espaço que aflige as pessoas, é a pressa, têm sempre muita pressa de se ir embora. Por isso nunca vemos o que tiram dos armário, para além do vulto confuso de fatos e vestidos- só quando reconstituimos, depois, vemos que deveriam levar também roupa interior, sapatos, cintos, artigos de toilette, miudezas. No momento não pensam, mas não acha que podiam depois voltar atrás, para levar o que esqueceram? Como eu disse: lenços, perfumes, miudezas várias. Podiam voltar buscá-las mas não voltam, saem a correr, às vezes nem fecham a mala, metade das coisas caem no caminho. No entanto –lembra-se disso?- há ocasiões em que olham para trás ainda um instante ,antes de fechar a porta. Só um segundo. Mas é diferente terem, ou não, olhado para trás, não lhe parece? Faz mesmo toda a diferença. Também há ocasiões em que as pessoas deixam mensagens, uma carta, ou mesmo só um papel rabiscado à pressa. Como quando se matam. Há uma espécie de morte nestas cenas, não concorda? Morte para quem vai ou para quem fica, ou em ambos os casos. Mas ela não se matou. Mudou apenas de vida, de apartamento, de rua, de homem, claro que havia outro homem na história. Foi ele que me lembrei de matar primeiro. Ou a mim. Nunca pensei em matá-la a ela. Acho que ele foi mais esperto do que eu, que não dava conta – ou talvez ela fingisse bem, pelo menos durante algum tempo. Também isso me lembra os filmes – ela a representar um papel, a fingir que não havia mais ninguém – e depois as grandes cenas de lágrimas e gritos e a gente no meio do quarto a pensar que aquilo não podia estar a acontecer connosco, que acontecia com outras pessoas, num filme. Há momentos de que não me lembro. Espaços em branco. Como se uma tesoura cortasse o celulóide e depois alguém colasse os pedaços, deitando fora outros. Pedaços que duram segundos, minutos. Tudo somado, há muito tempo deitado fora no filme que vejo sempre. Se pudesse recuperava os pedaços – aqui ela a chorar, atirada para cima da cama, ou eu a atirá-la, não sei – vejo sempre um braço, uma cabeça sobre a colcha da cama, os cabelos espalhados, a almofada caída, as mãos dela agarrando as minhas, que tinham mais força que as dela. Mas há pedaços que não aconteceram. Eu podia tê-la matado, mas não lhe toquei. Desatei a chorar como ela. Há sequências que podiam lá estar e não estão. Agora passa-me pela cabeça como era fácil terem acontecido : eu podia ter-lhe posto as mãos em volta do pescoço, apertado um pouco, julgando que era só um pouco. Podia. A senhora não imagina, ou por outra, penso que a senhora pode imaginar como é pequena a distância entre o que acontece e o que não acontece. Entre matar alguém e não matar. Todos podemos, alguma vez, matar alguém. Basta só mais um pequeno passo, um pequeno gesto e acontece, sabe? É verdade que eu estive muito perto. Imagino essas cenas, como se tirasse fitas de celulóide de um caixote de desperdícios. Mas sei que não aconteceram. Ela continua viva, bonita como sempre, talvez até mais do que antes. Às vezes vejo-a, ela é que não me vê, não olha para os lados, caminha depressa na rua, como se estivesse atrasada. | 
Nos dias em que a vejo não consigo dormir. Há outros bocados de filme que me vêm à cabeça, guardo-os na memória com muito cuidado para não os perder, ela a pôr fatias de pão e um pacote de leite na mesa, a travar o despertador que começou a tocar, a abrir-me a porta quando chego à noite, bocados de filme que vejo vezes sem conta, cenas mínimas, por vezes desconexas, que tento manusear com jeito, projectar com uma lâmpada não demasiado forte, para não correr o risco de se incendiarem, prefiro ver essas cenas em tom quase sépia, esbatidas, cenas de sexo prefiro não pensar embora também me venham à cabeça, sobretudo quando sonho com ela, e sonho muitas vezes com ela, às vezes penso o que lhe diria se lhe escrevesse uma carta, já tentei escrever-lhe mas desisto sempre, uma noite sonhei que ela me mandava um video, mas talvez não seja sonho, deve ser uma cena de um filme que vi algures, chego a casa e ela não está, depois reparo que há um video no gravador, vejo a cara dela de todo o tamanho do ecran e no ecran ela diz-me que se vai embora ,tem uma camisola azul e uma correntinha de ouro ao pescoço e no pulso uma argola que me parece de prata, fixo com todo o pormenor os adereços para não ouvir as palavras, está tudo no lugar, penso, a corrente de ouro, a argola de prata, a camisola azul, o reflexo de luz no cabelo, a face lisa brilhando, está tudo certo no ecran e não ouço as palavras, penso apenas amo-te, és tão bonita, começam a vir-me à ideia palavras muito gastas, não posso viver sem ti, a minha vida acabou, volta para mim, não aguento mais - e é então que a ouço dizer que se vai embora, apago o video e a cara dela desaparece no ecran, arrumo a cassete na estante e penso que é um pedaço de celulóide, só isso, um papel que ela representa bem, é verdade que teria jeito para actriz, no próximo filme pode fazer um papel diferente, mas sei que nunca irei vê-la como a má da fita. Talvez a senhora não acredite se lhe disser que fiz cópias de todos os filmes dela, quero dizer, de todos os filminhos de amador que fiz com ela. Sim, também tenho a minha pequena máquina de filmar, provavelmente é por isso que penso tanto nas coisas como se fossem filmes. Se lhe fosse falar dos meus filmes, ficava aqui a noite inteira. Podem não ser bons, mas são quase toda a minha vida. Ou eram, antes de ela se ir embora. Mas sossegue que não vou falar. Só lhe quero dizer isto: Guardei os originais dos filmes e diverti-me a transformar as cópias. Cortei, colei, mudei – ela era a estrela, a personagem, e eu o realizador, o cameramen, o produtor, o público – ambos tínhamos todos os papeis. É fantástico o que se pode fazer com o celulóide, descobri : o tempo andava para diante e para trás, aqui era ontem e depois anos antes, quando a conheci, aqui ela andava de bicicleta, nadava no mar, vinha a correr ao meu encontro, com um pequeno gesto eu fazia a bicicleta andar para trás ou parava-a de repente, ou repetia até ao infinito a sequência em que ela corria ao meu encontro –ela nunca acabaria de correr ao meu encontro, se eu quisesse. Foi assim que descobri como a gente tem poder sobre as coisas, manipulando-as, deve ser assim que se fazem os filmes verdadeiros livros, os livros são uma espécie de filmes, a senhora não acha, só que têm ainda mais poder, porque desde sempre houve palavras mágicas, e ainda não há imagens mágicas. E aí é que eu vi a diferença entre saber fazer e não saber ,eu manipulava os filmes e as coisas aconteciam ao contrário, a biciclete corria para trás, mas nada do que eu fizesse podia trazer aquela mulher de volta. Então lembrei-me : eu não posso, mas a senhora pode. Por isso lhe vim pedir uma dedicatória, aí nesse seu livro, para lhe oferecer a ela. Pedindo-lhe que volte. Claro que a senhora pode, como é que não.Com a data de hoje bem visível –porque faz hoje precisamente um ano que ela se foi embora. Eu sei que é tarde e que a senhora está cansada, mas por favor não arranje desculpas e escreva, não faz mal nenhum se não couber aí, já calculava que me ia dizer isso e trouxe mais folhas de papel, uma dedicatória não precisa de caber toda na página de um livro, se não couber que importância tem, o que importa é que ela volte. E se não voltar, diz a senhora, pelo amor de Deus não vamos pensar isso, como é que ela pode não voltar, se não voltar é porque a senhora não lhe soube dizer quanto eu a quero e escreveu a dedicatória errada. Mas isso não vai acontecer, tenho a certeza, a senhora vai fazer um esforço e escrever certo. Não vai? |