Actividades‎ > ‎Publicações‎ > ‎Mealibra‎ > ‎Série 3‎ > ‎Número 11‎ > ‎

Poesia

Ana Luisa Amaral (pp. 62-64)

ESTRATÉGIAS DE AMAR

Há tanto tempo aqui, à espera delas,
em amoroso espanto, e espreito
as horas,
finjo em olhar quase desmaio lento,
a ver se estão por dentro
(mas não estão),
abro os olhos em meia
sedução.

É tarde e eu não posso estar aqui
nesta espera, espreitando
desamor.

Odeio-as nesta ausência de equilíbrio,
quando não se organizam
como devem,
e porque existem só, em estado
puro,
em dicionários, filas de alfabetos,
inumeráveis filas de ditongos.

Tenho-as junto de mão,
e não são minhas.

Armá-las em quadrado e transformá-las
em coisa nuclear,
saber como as lançar
umas por sobre as outras, em cisão.

Que se auto-pulverizem
e eu seja ausente
da sua existência:
o espanto só de um mundo,
só em verde,
um mundo só de rios e só de gente.
Um céu mudo de espanto,
sem nasais.

Que eu possa ir para casa
finalmente
— o tempo: mancha igual,
a mesma sempre:
eterno ano, o mesmo traço a fogo,
e um rio correndo em direcção:
igual

OVELHAS E BIBLIOTECAS: SOFRIMENTOS

É um certo tom que eu não sei derivar
como devia: uma transparência, um esbatimento,
a abstracção das coisas.
A ovelha a meio do campo, vista deste combóio,
sofre só dessa terrível solidez: ovelha

O mesmo se passa com a minha cozinha, ou
um livro, ou uma emoção:
um assado bem feito pode superar
qualquer capítulo bem anotado,
o cheiro das cebolas é às vezes
mais transcendente
do que tantos caracteres
a que falta sal
 
Neste momento, está atrasado o combóio,
um inter-regional que pára nas estações todas,
mas há sol, e assim fico a conhecer
os apeadeiros portugueses, e talvez me sirvam
de poema mais tarde, e tenho o privilégio
de me comover com os seus tons
floridos

Agora a linha é mais simples e estreita,
correndo, paralela, à Estrada Nacional,
uma linha de frase básica,
só com os elementos principais.
Mas, às vezes, a ovelha que a atravessa, secante,
dá-lhe uma certa vírgula romântica

É num tom desses que eu me sei mover.:
no intermédio cruzamento
dos portões do real,
nas despensas do mundo

Essas em que guardo o resto dos temperos,
um ou outro feitiço
no Livro de Receitas —

CONSTELAÇÕES

Usamos todos a ilusão
de fabricar a vida:
histórias, constelações
de sons e gestos

Usamos todos a suprema glória
do amor: por generosidade
ou fantasia, ou nada, que de nada se fazem
universos

Usamos todos mil chapéus de bicos
mal recortados e de encontro
ao sol:
o nosso mais perfeito em franja e bico
e um arremedo tal e seiscentista
que ofuscando-se: o sol

Usamos todos esta condição
de pó de vento, ou de rio
sem pé: único dom de fabricar o tempo
em raiz de palmeira
ou de cipreste