
À Teolinda Gersão
Há seres que nascem para contar histórias. Na idade madura, são mulheres. E, depois, velhos. Alguns deles começam ainda na infância e não revelam um sexo definido. Não quer isto dizer que tenham corpos predestinados à androginia nem que padeçam de uma inconsistência como a dos anjos.
Dão-se, no entanto, logo a conhecer pela des-proporção da silhueta, os longos membros, o pequeno tórax onde o esterno ressalta num impulso, como se transplantado de algum pássaro. Confundem-se realmente com raquíticos se os olharmos com pressa e distracção. E não sei de outro modo de os olhar porque são fugidios.
Ficam retratos de na nossa arrogância imaginamos que os apanhámos na esquadria fotográfica e ali os temos à disposição. Os mais antigos são a preto e branco e não havia que desperdiçar, de forma que as crianças estão imóveis e muitas vezes trazem flores nos dedos, como num rito sacrificial. Podem perfeitamente ver-se a vida parar, dando atenção à objectiva, combinando com ela a atitude que mais arremedasse a eternidade.
Lá estão, no meio, os contadores de histórias, talvez um pouco mais desajeitados do que os irmãos e os primos, mais contorcidos nessa assimetria tão própria dos modelos infantis que denuncia a intenção da fuga. Mas aquilo que os distingue com clareza é o seu ar preocupado, atento, que a família supõe ser sisudez.
Posteriormente, a cor entrou para as películas, e isso trouxe um certo movimento, apanhou muita gente de perfil. Mas, embora guardadas nas gavetas, essas cópias perderam o vigor e mostram tons ardidos, apagados pela soma da luz que lhes tocou. Mas aos pequenos contadores de histórias, contrariamente ao que se esperaria, não afectou essa dissipação. Pois, entre os rosas e os violetas a que o leque de cores se reduziu, contra, ao fundo, os baloiços ou o mar, repararemos numa ou noutra testa já enrugada, sem que o ambiente nos forneça para isso explicação, dado que, em volta, os outros tagarelam, tanto quanto podemos perceber.
Nesta altura da minha descrição, pensarão todos que isto vai levar a um conhecimento de crianças que escutam vozes ou avistam hologramas. Ficai tranquilos, que não é assim. Trata-se só de um desajustamento entre a velocidade com que crescem, igual à dos restantes, e a demora com que a carne se afasta do início, do estado pré-natal em que era una com o estrume da terra e com as águas. A sua forma e o seu destino humanos ainda não cessou de as intrigar.
Se os procurarmos na adolescência muito dificilmente os encontramos, pois aprenderam entretanto a disfarçar-se. O terrível momento que atravessam convida à manha e à dissimulação. É, ao contrário do que se imagina, um tempo de trabalho espiritual que deixa toda a gente mergulhada no mais impiedoso desconforto. De certo modo, todos se parecem com contadores de histórias. Todos têm o vinco filosófico numa testa que o acne desgraçou. Todos fazem a sua travessia pelos poemas muito musicais e desembocam na idade adulta sem que experiência os tenha comovido.
Vereis que os nossos contadores de histórias dos vinte aos quarenta anos são mulheres, com alguma excepção surpreendente, pois os que há cheios de virilidade. Os que optam pela forma masculina fazem a melhor escolha inicial, já que a paternidade só lhes pede algumas horas bem distribuídas e outra é a mão que faz mover a casa. Porém razões existem, e de peso, para que ganhe avanço o feminino. Dizem até que o respirar das crias, enquanto dormem, é inspirador. Parece que depósito de enredos se encontra muito perto da cozinha. Há realmente uma fertilidade que se enraíza na exaustão doméstica.
É de levar igualmente em conta que a divisão em sexos se submete a critérios flexíveis, de maneira que se abre ainda uma terceira hipótese seguida por alguns com muito agrado. São muito apreciados hoje em dia pelo requinte com que se apresentam e a sua ambivalente inspiração.
Surge depois, com o passar do tempo, uma sabedoria que transcende essa definição do sexual. Por muito maldizentes que se queiram, por muito que componham o cabelo, as antigas mulheres passam a velhos. Até o seu descaramento erótico revela alguma complacência fálica. Só as que muito e muito porfiaram, mesmo para além do que era consentido pelo bom senso e pelos ares do tempo, em afirmar a feminilidade, guardam um pouco do seu ouro extinto. Mas não lhe sobra já qualquer talento. Estão condenadas a adjectivar, cada vez mais insupor-tavelmente, os mesmos contos de há cinquenta anos.
É durante o esplendor da meia idade que as mulheres contadoras nos fascinam pelo alcance da sua perfeição. Têm inteiramente decifrada a lin-guagem da carne e a dos afectos e jogam-na a seu modo, livremente, e dispondo de tempo. Atingem certos escalões de harmonia na família, como na relação com os netos, que transforma as dores da criação nessa leveza de lhes ler livros e levá-los ao jardim. Não há nelas sinal de decadência e a sua pele naturalmente exibe aquele tom de biscuit que antigamente se obtinha só à força de alvaiade, que devagar as ia envenenando. Olhamos para elas com agrado e quase pensaríamos que estamos face a uma mulher bem sucedida, tal a serenidade com que falam do seu quotidiano e dão receitas das mais elaboradas refeições. Porque são experimentadas no engano.
Mas acontece sempre o bom momento em que por distracção se denunciam: quando começam a contar-nos histórias e a sua natureza enfeitiçada desponta, num fulgor, à superfície.
