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Número 13

  • Sobre o livro: "O inimigo sem rosto - Fraude e corrupção em Portugal
    (de Maria José Morgado e José Vegar)", por Manuel Simas Santos (pp. 89-92)

 Foi apresentado, em 22 de Novembro de 20003, em Viana do Castelo pelo Centro Cultural do Alto Minho, com a colaboração da Delegação local da Ordem dos Advogados o livro «O inimigo sem rosto – Fraude e Corrupção em Portugal», de Maria José Morgado e José Vegar.

      A sua importância justifica, a nosso ver, uma nota de leitura de algum detalhe.
      A primeira observação é de que o seu conteúdo vai além do que promete o título.

      Se não nos aponta rosto físico do inimigo, é certo que nos aponta maneiras de todos nós, políticos, partidos, administração pública, sistema financeiro, magistrados, polícias, comunicação social, cidadãos, colaborarmos activamente no desenho concreto das suas feições.

      Ao falar-nos na Fraude e Corrupção em Portugal, não deixa por isso de situar o fenómeno ao nível a que ele deve ser colocado: um nível planetário e de convocar as experiências e ensinamentos estrangeiros.

      Não nos cabendo fazer um exercício académico sobre a corrupção e o crime organizado, designadamente o económico e financeiro, importa reconhecer que também disso se ocupa e bem, o mesmo livro.

      Como dizem Xavier Raufer e Stéphane Quéré, em «Le crime organisé» (1*), a criminalidade organizada é a primeira e principal beneficiária da desordem mundial que reina depois do fim da guerra-fria. Ao mundo regulado da ordem bipolar sucedeu-se um mundo mutante no seio do qual a questão criminal se apresenta com uma amplitude estratégica. A mundialização da organização criminosa produziu um poder financeiro enorme. Em termos de valor, por exemplo, os estupefacientes constituem o primeiro produto mundial nas trocas internacionais. 

Este «capital criminoso» é possuído por algumas dezenas de chefes mafiosos, grandes traficantes, senhores da guerra e ditadores corrompidos. O branqueamento destas quantidades consideráveis de dinheiro «sujo» põe em perigo tanto as frágeis economias dos países emergentes como as dos países desenvolvidos. Mas a esfera mediática e a classe política têm uma percepção ainda limitada deste perigo muito real.

    Um espectro paira sobre a Europa: o do crime organizado. Há mais de dois séculos, sociedades democráticas, regidas por normas livremente aceites, vivem no nosso continente. Actualmente, elas estão ameaçadas pelos senhores do crime organizado.

      Ou, como refere Jean Ziegler em «Os Senhores do Crime – As novas máfias contra a democracia»:
      «Os cartéis do crime constituem o estádio supremo e a própria essência do modo de produção capitalista. Beneficiam grandemente da deficiência imunitária dos dirigentes da sociedade capitalista contemporânea. A globalização dos mercados financeiros enfraquece o Estado de direito, a sua soberania, a sua capacidade de resposta. A ideologia neoliberal que legitima – pior: que «naturaliza» – os mercados unificados, difama a lei, debilita a vontade colectiva e priva os homens de disporem livremente do seu destino. 

      Os grandes «padrinhos» avançam mascarados. Detestam expor-se à luz do dia. O seu mundo é o crepúsculo. Só raramente comparecem em tribunal. Poucos juízes ouvem as suas mentiras. Com excepção de alguns raros iniciados, ninguém lhes conhece o verdadeiro nome. Não têm rosto. 

      Utilizando inúmeras e variadas identidades, levam vidas aparentemente muito honestas, por vezes altamente prestigiosas».

      É, pois, neste preocupante cenário que se move o nosso livro.
      Propõe-nos ele, se bem o lemos, 3 andamentos:

      Um primeiro andamento em que o inimigo não tem rosto mas tem nomes e diversas personalidades que se conjugam numa associação de vontades e condutas em prejuízo da nossa vida colectiva.

      Nesse andamento, que cruza todo o livro e lhe serve de fio condutor, narra-se com rigor e ironia o comportamento dos criminosos, desde a preparação de mais um crime complexo de fraude e corrupção (à mesa da marisqueira – págs. 23 a 26), à sua preocupação em lavar o dinheiro que vão colher dessa operação e como vão assim aumentar o seu poder, desvendando os seus esquemas de corrupção (lucro e poder – págs. 53 a 56), e finalmente o epílogo, com as dificuldades da investigação, os seus constrangimentos institucionais e humanos, o julgamento com o seu carácter lacunoso e formal, num registo que, sem desmotivar, foge ao cliché do final feliz e ao apelo ao herói (o tempo da colheita – págs. 97 a 102).
      Quem contacta com a investigação ou os tribunais criminais e lê esta ficção real, não consegue deixar de reconhecer nesta prosa saborosa pedaços dos casos reais com que se deparou antes.
      Daí o seu carácter real e a sua capacidade de motivar e introduzir os restantes andamentos.

      O segundo andamento faz uma análise rigorosa das diversas componentes envolvidas:
      Assim desenvolve, num primeiro compasso, uma teoria do crime económico e características das associações criminosas (págs. 27 a 32), um catálogo universal das tipologias do crime económico-financeiro (págs. 33 a 41), a descrição das estratégias e recursos das associações criminosas, ou seja dos seus modos de fazer (págs. 39 a 41) e finalmente percorre alguns casos em julgamento, pela eventual prática de crimes económicos organizados (págs. 43 a 49).

 Num segundo compasso, fala-nos do lucro e do poder, trata da estrutura e significado da corrupção – a economia do saco azul, págs. 57 a 70 – traçando o seu enquadramento teórico e histórico.

      E, de seguida, descreve nas práticas inconfessáveis (págs. 71 a 79) as tipologias da corrupção portuguesa (a fuga ao fisco, a burocracia, o deficiente funcionamento dos serviços e a tentação do enriquecimento indevido, alimentam e camuflam a grande corrupção e o crime organizado, criando um terreno de areias movediças, responsável pela fraca competividade das empresas portuguesas e por uma baixa criação de riqueza – 79).

      Num terceiro compasso, é-nos referido o branqueamento de capitais, a lavagem de dinheiro como coração do crime organizado, como um rasto invisível, lembrando que o seu carácter global: «combater o branqueamento de capitais é como deter o aquecimento global: a não ser que todos (Estados e instituições) se unam, haverá poucas esperanças de acabar com o problema» (94).

      Analisado e enquadrado o tema, o nosso livro, já num outro andamento, o terceiro, trata da intervenção das instâncias formais de controlo, da investigação criminal

      Fala-nos, então, dos obstáculos à produção da prova nestes crimes, os filtros (págs. 103 a 108) – o primeiro compasso: destacando a raridade da denúncia, o mundo fechado, protegido em que habitualmente circulam estes criminosos, o segredo bancário e fiscal, a compartimentação rígida de dados detidos pelas diversas instituições, os paraísos fiscais ou os off-shores, a deficiente organização dos tribunais, o autismo das autoridades judiciais, a sobreposição de competências dos órgãos de investigação criminal, falta de recolha, análise, tratamento e controlo de informação e o reduzido patrulhamento do ciberespaço.

      Refere-se à eliminação da rotina do papel (págs. 109 a 112) – num segundo momento – realçando que este tipo de criminoso tem, apesar de tudo, um rosto e um bilhete de identidade, que a prova do seu crime não é impossível de obter, desde que seja possível ir à sua procura no terreno e que a prática já demonstrou que é possível aplicar um outro modelo de investigação que, bem utilizado, deita por terra o mito da invencibilidade da corrupção e do crime económico.

Sugere, depois, uma chave para a investigação criminal (págs. 113 a 122), com um paradigma de investigação concretizado a montante por um sistema preventivo de recolha, análise e tratamento da informação dirigido à detecção dos criminosos e suas actividades e que permita traçar um quadro estratégico de ataque adaptado à criminalidade e à corrupção, com recursos a meios específicos de provas (escutas, agentes encobertos, entregas controlados), prova digital, obtenção de dados bancários e patrimoniais, o acesso às instituições financeiras off-shore, a protecção das testemunhas e criação de equipas multidisciplinares.

Os meios específicos de prova são, neste domínio, os únicos capazes de demonstrar a realidade dos factos imanente a cenários complexos, sem que venham a impedir ou deturpar as garantias de um processo penal justo.

      Esses meios, cuja revisão agora se equaciona, impõem um equilíbrio entre a interpretação hipergarantista da Lei e o processo penal com lealdade, sem esquecer a necessidade de eficácia proporcional no combate a estes criminosos.

      E apela a uma reformulação de poderes (págs. 123 a 127) que quebre a barreira entre polícias e magistrados, com a possibilidade de serem organizadas investigações em unidade funcional entre o Juiz de Instrução Criminal, o Ministério Público e a Polícia Judiciária, e porque não mesmo um tribunal penal especializado no julgamento do crime económico-financeiro e da criminalidade organizada.

      Como refere, na maior parte das vezes, um polícia português não consegue obter autorização em tempo útil para usar procedimentos especiais de investigação. Por vezes, as autorizações levam semanas, se não meses. Por outro lado, as restantes componentes da Administração Pública não têm uma cultura de cooperação com a Polícia judiciária para desmantelamento do crime organizado.
      Mas mais grave ainda, é a falta de sensibilidade das magistraturas, salvo honrosas excepções, para o apoio a investigações que são demasiado complexas e que mexem com interesses demasiado poderosos para serem tratadas como quaisquer outras.

      Numa feliz síntese, acentua-se que entre a eficácia das organizações criminosas e a ineficácia do combate policial, está o tamanho do fenómeno da corrupção e do crime económico-financeiro em Portugal.
      Ocupa-se igualmente o livro da justiça e comunicação social no julgamento da justiça (págs. 131 a 138) destacando que as relações entre justiça e comunicação social, principalmente quando estão em causa processos de grande criminalidade, como são por exemplo os de grande corrupção, da macrodelinquência financeira e de crime organizado, são quase sempre polémicas.

      Lembra que nos julgamentos mediáticos, os meios de comunicação estão muitas vezes no centro do furacão, quase se substituindo aos tribunais, perante o silêncio ensurdecedor dos magistrados. E se por vezes os meios de comunicação visam mudar indevidamente o curso da justiça, é importante que os magistrados e as polícias compreendam eventuais interferências injectadas por essa via e defendam a investigação ou o julgamento dos maus efeitos da publicidade externa, sendo duplamente responsáveis dentro e fora do processo: informar e ser intransigente na defesa de um processo justo e equitativo «sair da redoma, mantendo a redoma».

      Mas também não esquece que, no combate à corrupção e grande criminalidade, os meios de comunicação social têm desempenhado um papel cada vez mais determinante ao denunciar factos censuráveis.

      E que não lhes cabe ser servis, mas sim praticar um jornalismo intransigente em relação às falhas dos Magistrados e dos polícias, desempenhando uma das funções que lhe cabe num Estado de Direito.

      Finalmente, é apresentado um útil apanhado de consultas e leituras adicionais, respeitantes à Internet, aos documentos em papel e à legislação sobre o tema.
      Percorridos sinteticamente os passos fundamentais do nosso livro, importa retomar uma visão de conjunto.

      Para reconhecer, como se diz em texto de apresentação, que os crimes económico-financeiros organizados, neles incluindo a corrupção e a fraude, não fazem, aparentemente vítimas. No entanto, são provavelmente aqueles que maiores danos causam aos Estados e aos seus cidadãos. Geram pobreza, impedem o desenvolvimento económico, provocam injustiça social e são responsáveis pela degradação do sistema político e das instituições públicas.

      Escreve-se neste livro sobre questões extremamente complexas e delicadas de um modo simples, fazendo uma análise fundamentada da dimensão real desta criminalidade em Portugal, em que nos revemos inteiramente. E que permite a cada um de nós interrogarmo-nos sobre o verdadeiro significado de muitos gestos com que nos cruzamos, aumentando o nosso grau de compreensão e de vigilância.

      Interpela-nos, pois, civicamente quanto ao dever de intervir designadamente num momento em que este tema demora a entrar na agenda política, o que provoca maiores dificuldades ao seu combate. Sendo de realçar, novamente, que este livro chega às nossas mãos como um acto de intervenção cívica dos seus autores, como bem o revelam os seus prefácios.

      Como escrevi na apresentação do livro «O mal, pensar com Hannah Arendt»de Helena Sousa Pereira, lembrando o pensamento daquela filósofa, há um dever ético de julgar face a situações limite, sobretudo quando a banalidade do mal desafia o pensamento, dever que a todos nos interpela, numa autêntica ética da política.

* Juiz Conselheiro no S. T. J.
(1*) Puf, Paris, 2000