Pessoa foi um infatigável contador de estórias, embora a maior
parte delas continue inédita. Estamos a braços (eu e a Ana Freitas) com a
gigantesca tarefa de catar na celebérrima Arca as folhas soltas e
misturadas desses contos que Pessoa foi escrevendo ao longo da vida.
Diga-se desde já que da maior parte deles ficaram os planos e os
fragmentos – por diferentes razões . Mas creio que sobretudo porque
Pessoa escrevia de forma muito particular : ia-se escrevendo, ao longo
da vida, como quem faz um diário - ou melhor, vários diários ao mesmo
tempo, sob diferentes máscaras. A do contador é uma delas, quer tenham
recebido nome de gente ou não. Nome, isto é, nomes.
Curiosamente, todas as “personalidades literárias” ( pré-heteronímicas),
dos primeiros tempos, em língua inglesa, escreveram contos. A mais
antiga, David Merrick,concebeu, em inglês , o conto
fantástico-filosófico A Hora do Diabo ( que editei em 1997 na Assírio e Alvim) a que então chamou Devil’s Voice
– entre outros. As que se lhe seguiram – de certo modo, metamorfoses em
cadeia, umas das outras, Charles Robert Anon, Horace James Faber,
Alexander Search – foram-se transmitindo não só a vocação de contadores
de estórias mas as próprias estórias. É assim que o plano de David
Merrick de escrever “Tales of a Madman” foi herdado, por volta de 1907,
por Vicente Guedes (“Contos de um Doido”) que se proporá traduzir alguns
dos imaginados ou mesmo escritos pelos seus predecessores .Este
primeiro autor do Livro do Desassossego que se aplicará também a
escrever os seus próprios contos passará , por seu turno, a sua
vocação e bastantes projectos não realizados a um outro contador de
estórias, um tal Pero Botelho, que terá , por sua vez, imaginado e
contado o Dr. Abílio Quaresma... Pero Botelho terá herdado também o
conto em projecto de Bernardo Soares ( que sim senhor, também tinha
veleidades de contista!) O Prior de Buarcos...
À boa
maneira pessoana do texto no texto, género bonequinhas russas encaixadas
umas nas outras , Quaresma, apresentado e contado por Pero Botelho,
apresentará e contará, por sua vez, todas essas personagens de que se
fez rodear...( Provo o que estou a dizer, com fac-similes e tudo, em
Pessoa por Conhecer, Lisboa, ed.Estampa, 1990, vols. I e II).
É
também curioso reparar que o Quaresma contador deste conto - de que a
Ana Freitas fixou passagens do último capítulo – ao servir-se da
designação “contos de raciocínio”, está simplesmente a traduzir a
expressão inventada pelo seu predecessor inglês Horace James Faber:
“tales of a reasoner”.
Não se perca , contudo, de vista, que os
contos pessoanos são de diferentes naturezas: Além dos “ de raciocínio”,
que todos os “policiários” são, há que considerar os “fantásticos”, os
de cariz esotérico (que traduzem uma busca espiritual) e até “fábulas
para nações jovens” ( de que publicámos algumas em Pessoa Inédito, Lisboa, Livros Horizonte,1993).
Alguns contos têm a forma de cartas. Assim é essa interessantíssima
“carta da corcunda para o serralheiro” ( que publiquei em Pessoa por Conhecer,
vol.II,pp.256-8) em que uma aleijadinha que só pode ver o mundo da
janela confessa o seu impossível amor ao serralheiro que mora em frente.
É também uma voz de mulher que se manifesta no monólogo que é o conto
“Maridos” (inédito), em que a ré explica ao juiz e aos jurados que matou
o marido para estar de bem consigo e com a Igreja Católica.
As
passagens inéditas (manuscritas a lápis, em letra de penosa decifração)
hoje aqui apresentadas, a seguir ao plano do conto dactilografado, são
também as razões dadas pelo criminoso de “O Caso Vargas” para justificar
o seu gesto – depois de Quaresma o ter identificado como tal.
Diferindo dos autores do género, Pessoa privilegia o “raciocínio” em
detrimento do enredo. Por isso a maior parte dos contos fica incompleta.
Repara-se também como aqui Pessoa, grande leitor de livros de
psiquiatria, tenta mergulhar nos abismos da psique humana, e pôr-se na
pele de um criminoso – a quem vou passar imediatamente a palavra...
Teresa Rita Lopes
O CASO VARGAS
Fernando Pessoa
Cap. I – A Morte na Azinhaga
II – O Princípio de não se perceber.
III –
Cap. I; - A Morte na Azinhaga. – Começa no aparecimento de Custódio Borges em Benfica e acaba na chegada dele e de Pavia Mendes junto do corpo de Vargas, e da declaração do polícia presente de que se trata de um suicídio.
Cap. II. – (título?) – A investigação preliminar, incluindo os depoimentos de Borges, Pavia Mendes, do guarda municipal sentinela e do indivíduo morador na casa de pequena quinta, que ouviu o tiro de noite. Acaba com a afirmação, de Borges para Pavia Mendes, de que Vargas tinha em seu poder os planos.(1*)
Cap. III. – título? – A investigação consequente, já a cargo da Instrução – Chefe Bastos e Agente Guedes. A procura do indivíduo desconhecido, o depoimento de Borges sobre ele, a investigação por Guedes dos alibis de Borges e Pavia Mendes. (O capítulo começa uns dias depois de acabar o primeiro, e deve indicar-se que no entretempo nada se soube do misterioso indivíduo, nem houve notícia dos planos, nem de quem teria sido o segundo indivíduo misterioso, que surgiu do alto da azinhaga pouco depois de se ouvir o tiro.)
Cap. IV. – As pessoas do drama (Dramatis Personae). – A investigação do agente Guedes sobre as pessoas de Carlos Vargas, Custódio Borges, Pavia Mendes, etc. Isto e as considerações e conclusões provisórias do Chefe Bastos.
Cap. V. – Depois de passarem mais uns dias (provavelmente poucos), o
agente Guedes (ou o chefe Bastos) indica ter sido procurado por um
desenhador do Arsenal de Marinha (uma das pessoas junto de quem tinha
investigado sobre a pessoa de Pavia Mendes) para dar a estranha
informação de que os novos planos , que Pavia Mendes disse que ia
fazer, são afinal os antigos. O Juiz de Instrução (que nesta altura
aparece pessoalmente – “Vou chamar isto a mim, meu caro Bastos. Vá v.
tratar do caso daquela moeda falsa no Porto, enquanto eu e o Guedes nos
entretemos com esta brincadeira. Isto vai sendo divertido de mais, e não
é justo que os outros se divirtam sem nós nos divertirmos também.”).
A chamada do guarda municipal que fora sentinela, e a decisão de chamar Pavia Mendes.
Cap. VI. – O Segundo Depoimento do Comandante Pavia Mendes. -
Cap. VII. – O Segundo Depoimento de Custódio Borges. O caso aparentemente fechado, Guedes ainda insatisfeito. E anunciado Quaresma.
Cap. VIII. – Abílio Quaresma. – Desde a entrada até à solução sumária.
Cap. IX: - A Arte de Raciocinar (Investigar). Teoria e investigação preliminar do caso Vargas.
Cap. X. – Aplicação do processo hipotético ao caso Vargas. Determinação da probabilidade de ser culpado Borges.
Cap. XI. – Aplicação do processo histórico. (A Batalha de.....).
Cap. XII. – Aplicação do processo psicológico. (Psicologia Patológica).
Cap. XIII. – O Caso Vargas.
Cap. XIV. – Bacalhau à Guedes.
Cap. XIV. – O Depoimento Final.
(possivelmente só 14 capítulos, estando certo, como está, até ao cap. VIII, mas formando o IX e o X um só capítulo, e seguindo, depois, X por XI, XI por XII, XII por XIII, XIII por XIV e XIV por XV) (alternativamente, ao todo XVII capítulos, sendo o IX desdobrado em dois, e o XII também, sobretudo este, dada a sua grande extensão). O primeiro critério (destes dois) é o mais lógico.
O Caso Vargas – Último Capítulo
“Por qualquer razão que não tenho ciência nem razão para compreender ou
explicar, o pensamento e a sensibilidade estão desligados em mim. É
talvez por isso que, tendo tido sempre tanta vontade de ser poeta ou
artista, nunca pude conseguir sê-lo. A mais violenta emoção não me
invade a esfera do pensamento; o pensamento mais intenso não me invade a
esfera da emoção.
Senti-me sempre dois indivíduos – um a pensar,
outro a sentir. Quase que vejo na minha alma o espaço que está aberto
entre os dois.
“O medo, por exemplo, que parece a emoção
mais própria para desvairar, deixa-me calmo de pensamento para me
desviar do risco. Posso tremer como varas verdes, mas penso, nesse
próprio momento, como uma lâmina de aço.
“Confesso que
hesitei um pouco, adentro de mim mesmo, e no próprio plano. Pareceu-me
que estava traçando um daqueles planos da insónia, tão claros em todos
os seus pormenores, tão ligados em todos os seus elementos, e que,
passada a vigília e diante do dia, se desfazem como coisas absurdas, que
é incrível que nos atravessemos a considerar realizáveis. Mas depois
reflecti que, muitas vezes, esses próprios planos de quem não dorme não
representam propriamente um absurdo, mas uma audácia. Relembrei algumas
cousas pensadas assim, e que deixei depois de pensar em fazer, mas que,
na verdade, outro poderia realizar. Reflecti que a realidade não só nos
mostra obstáculos, mas nos tira vontade.
“Uma qualidade
tenho, embora não tenha senão essa. Sou de um sangue – frio mental
absoluto. Posso estar a ferver de ódio, a fremir de desejo, a tremer de
medo. Não perco o comando de mim nem dos meus gestos; nada se me
obnubila quando observo; não erro um passo. É curioso que, por mais
bêbado que esteja, não sou capaz de cambalear nem de tartamudear. E, em
plena tontura, se não digo coisas certas, sou, em todo caso(2*), incapaz de dizer o que não quero. Isto não é força de vontade: é uma coisa natural, de temperamento.
“…como se o pasmo se erguesse e eu visse de repente tudo claro, o cenário do crime.
“Não sei contudo dizer bem o que subitamente compreendi em mim. Nunca,
até esse momento, me tinha passado pela cabeça a ideia de matar o
Vargas. As minhas razões de queixa eram grandes, mas ficava sempre em
mim uma espécie de vago(3*). Certa mobilidade de temperamento
fazia com que tão depressa pensasse nas ofensas recebidas como me
esquecesse delas. Parecia às vezes esquecê-las no próprio momento em que
me ocorriam. Nesse momento, porém, o que senti não foi a brusca
intenção de matar o Vargas, como coisa nova. Não: senti que tinha enfim a
oportunidade de realizar uma coisa há muito pretendida, como se a
ideia de matar o Vargas estivesse morando há muito, escondida ou
mascarada, em pequeno recanto da minha alma. Senti para traz, às
avessas: senti que tinha sempre querido matar o Vargas, sem o sentir(4*) nem saber(5*).
“Fiquei pasmado sem emoção – a olhar para dentro de mim como para uma
paisagem qualquer, descoberta sob o mar ao virar um ângulo da estrada – E
onde logo, automaticamente quero crer que no mesmo momento em que assim
me analisava – comecei – eu ou um segundo eu – (e deveria dizer comecei
ou continuei?) a elaborar nos seus pormenores futuros a morte do
Vargas.
“Senti-me despersonalizado. Nem era como se estivesse
elaborando o entrecho ou a efabulação de uma peça. Nisso haveria mais
entusiasmo. Estava mais dormente, como na insónia com vontade de dormir,
em que o espirito todo vela com o sono do corpo á roda, como uma luz
com a sombra da mesa no chão. Tive, quanto muito, uma vaga pena de estar
pensando assim – mas não sei porquê.
“No entanto, como se
estivesse pensando e vendo separadamente, vi desenrolar-se diante da
minha imaginação a fita cinematográfica do crime. Parecia mas estar
vendo profeticamente o que haveria de ser sem que eu agisse, do que
planeando o que eu mesmo haveria(6*) de(7*) executar.
Normalmente, esta atitude é a dos pequeninos mentais, condenados de
nascença a nunca fazerem um gesto para o simples princípio de os
realizar.
“Mas, ao pensar isto, não o pensava. Qualquer coisa
obscura me dizia que isto não era como aquelas imaginações da insónia ,
impraticáveis pela falta de audácia e de vontade complexa no sol do
dia. Um movimento hesitante dentro de mim parecia levar-me, como se eu
fosse num comboio, incerto mas indo, para uma realização inevitável,
fácil, imposta, à minha ausência de vontade pela vontade suplementar do
Destino.
“Por fim unifiquei-me, [como que desperto e completo ao sol o que vinha elaborando, passivo, na penumbra].
“Comecei a pensar praticamente em como realizar o meu intuito. Fi-lo
ainda sem emoção, com quem recebe uma ordem, nem por isso muito
complexa, e se dispõe e prepara para a executar. O meu cérebro estava
lúcido como se fosse de outra pessoa. Não que eu seja habitualmente
pouco lúcido, não posso porém descrever a lucidez que eu agora sentia
senão desta maneira. Não era uma lucidez anormal: era uma lucidez
alheia.
“Comecei por considerar os perigos e dificuldades do
que queria fazer. Mas – coisa curiosa! – os perigos não me surgiam em
coisas que temer, mas simplesmente em coisas que evitar; e as
dificuldades pareciam-me episódios de um filme qualquer, puramente
mental. Cheguei a pensar, vagamente, num intervalo qualquer de não sei
quê, se estaria doido, mas quase que me senti sorrir, sossegado, ao
sentir um deslizar fácil e não voluntário do meu ser todo para um plano
inclinado sem saliências. Ocorreu-me um episódio já longínquo, de
quando, várias vezes, tive aquela forma de mediunidade chamada
escrevente – a escrita automática. Todo o meu espírito ia agora como
então o braço direito, um pouco insensível um pouco ainda meu, mas
aéreo, rápido, personalizado.
“Neste estado confuso de clareza estive
não sei quanto tempo. Nestes estados de alma o tempo não é um elemento
compreensível. Quando, como quem se levanta, emergi destas meditações em
pensamento, verifiquei que alguém por mim – eu mesmo talvez – tinha já
elaborado, enquanto eu tardava, o plano completo do crime.
“O plano apareceu-me de um modo estranho, principalmente visual –
através de indumentária vista, ruas vistas, casas, esquinas à noite, o
guarda-nocturno, o meu próprio regresso final a casa, onde a luz do gás
ardia sempre, depois de tudo consumado.
“Escuso de delinear o
plano. Ele ficará claramente exposto através dos pormenores da sua
execução. Em outras palavras: contando como o executei, mostrarei o que
ele era, e não terei que dizer a mesma coisa duas vezes. De resto, não
houve divergência nenhuma entre o plano e a sua execução. Pensei-o bem, e
não surgiu qualquer circunstância acidental e imprevista com que
tivesse que modificar, no momento, qualquer pormenor do que pensara.
“O patrão tinha guardado lá em baixo no escritório, de que eu era um
que tinha as chaves, um sobretudo escuro, óptimo de fazenda, umas
polainas, umas luvas, um chapéu mole escuro, e uma mala de viagem,
pequena. Tinha muitos artigos de vestuário, mas esses não vi com a
imaginação, pois espontaneamente via só o que precisava. Em casa tinha
eu uns óculos sem graduação, que me haviam servido no teatro uma vez. Um
bigode preto, que, pela mesma razão, tinha tido, completava a
personalidade exterior com que eu haveria de encontrar o Vargas em
Benfica. A minha estatura e a do patrão diferiam insignificativamente.

(1*) na margem esquerda existe a seguinte anotação: «Só a cargo da Instrução: ao ½ dia na esquadra de Benfica».
(2*) Var.: «todavia»
(3*) O resto da frase encontra-se manuscrita à margem com um traço lateral e a palavra «la» ou talvez «ea».
(4*) Var.: «ter sentido»
(5*) Var.: «sabido»
(6*) Var.: «teria»
(7*) Var.: «que»