23.6.2003 – Em viagem para o Peru, via N. York. Quem pode lê, quem
não pode, dorme. De todas as hospedeiras de bordo, a única negra é a que
serve a “business class”: American political correctness at its best.
Os últimos dias, em casa, antes desta viagem que vai durar um mês,
foram de arrumações. Nestas arrumações acontece de tudo, inclusivamente,
encontrarmos livros e revistas “ocultados” debaixo de pilhas que os
tornavam inacessíveis. Entre as revistas que encontrei, um número do
Times Literary Supplement, de 1999, com três recensões
interessantíssimas: uma sobre o cientista inglês, J.D. Bernal e a sua
cegueira ideológica, outro sobre o poeta da 1ª guerra mundial, Siegfried
Sassoon e o terceiro sobre J. Luis Borges. Sassoon esteve entre os
poucos que a morte poupou mas pagou um preço: de regresso a casa, viveu
até aos 81 e nunca mais escreveu poesia que prestasse. Apaixonou-se por
uns rapazes que o trataram mal e casou com uma rapariga a quem tratou
mal. Escreveu má poesia antes e depois da guerra e boa durante. Ficou
furioso com o aparecimento de Eliot na cena literária. O autor de The Waste Land nunca se lhe referiu e não há indícios de Sassoon ter percebido patavina do livro de Eliot.
De Borges, o artigo conta uma anedota deliciosa (borgiana). A cegueira
de Borges não era, até certa altura, levada muito a sério por alguns.
Dizia-se que era, em parte, fita. Que ele a usava para que lhe
prestassem pequenos serviços. Por exemplo, um dia estava a uma esquina
entre duas avenidas, parado, aguardando que aparecesse alguém que o
ajudasse na travessia. A certa altura aparece um homem que lhe pega no
braço e, juntos, atravessam a perigosa avenida. Quando Borges se voltou
para agradecer, o outro antecipou-se dizendo: “Obrigada por ter ajudado
um cego a atravessar a avenida”. História verdadeira ou inventada pelo
próprio Borges? Vá-se lá saber!
24/6, de manhã, em Lima.
Viagem horrível, 18 horas desde Lisboa até Lima, com mudança em N. Y. A
mudança de avião, mesmo com despacho directo de bagagens, em Lisboa,
obriga ao levantamento das mesmas em N.Y., levando-as, à mão,
para o balcão da companhia de aviação. Com a A incapaz de pegar numa
mala, e eu a ter que gerir três, mais a minha pasta e um saco com whisky
– um petisco. Depois, mais 8 horas, de avião, com crianças a berrar o
tempo todo, cadeiras inconfortáveis e quase impossibilidade de leitura. A
América pode ser a nação mais organizada do mundo mas, nos serviços de
aeroportos, não se vê nada – uma bagunça completa. E o inglês quase
desapareceu – fala-se espanhol e viva o velho!
Viemos para a
casa da Geninha – uma beleza: um condomínio dentro de outro. Piscina,
bons quartos, boa luz. E as macnetas que não pediram licença a ninguém
para crescerem, nestes quatro meses que passaram desde a última vez que
as vimos em Portugal.
Agora, o pequeno-almoço tomado, a A a
descansar, depois da odisseia de ontem, vim para a sala ler um pouco –
forma de repouso. Trouxe comigo para aqui, um livro há muito adquirido e
lido – The Triple Thinkers, de Edmund Wilson – e Mix Yourself a Redhead, de Charles Williams. Trouxe o Wilson porque prometi, para a 1ª semana de Agosto, às Ideias à Esquerda, um texto sobre marxismo e literatura e o ensaio do Wilson, nos Triple Thinkers,
é fundamental. Vou relê-lo e comentá-lo. O Williams is just for
pleasure – um thriller nunca fez mal a ninguém, mesmo em processo de
escrita ensaística.
Lá fora, como diria o Hemingway, está sol.

Trouxe de Lisboa, como leitura, além disto: o último romance do Piers Paul Read, o Youth, de Coetzee, uma novela de Unamuno e o último de Ken Follet. Não sei se será o suficiente para aguentar um mês, mas posso sempre comprar aqui o último Vargas Llosa e, além disso, a Geninha tem a casa recheada de livros. E nem só de literatura vive o homem.
25.6 – Lima.
Ontem fomos almoçar a um restaurante – Bohemia – num complexo comercial
chamado Polo. Depois do almoço veio ter connosco a Karin, de que me
lembro, em Lourenço Marques, para aí com 6 anos. Era filha da Rosa
Maria, que já morreu, e era tão bonita como notável. Tirou medicina, já
mãe de vários filhos, o que a ajudou a melhor seguir a doença do filho,
que era rara. Só se salvou devido à mãe empreendedora que tinha. Com o
Pai, Sousa Otto, fundei a Alliance Française (ou quase fundei),
em Lourenço Marques. A Karin cursou direito em Portugal, depois do 25
de Abril, casou com um filho de diplomata peruano e acabou por vir viver
para o Peru. Aqui, o marido trabalhava para o governo, os governos
mudam e agora, no meio da crise, está desempregado. Têm 4 filhos, um
gravemente patológico e vivem todos em casa do pai embaixador reformado.
Isto é, vivem mal. A Karin tem a mesma cara da criança que conheci,
apesar da crise, mostra uma energia e um speed incomparáveis. Falou-me
num português das arábias que andou pelo mundo fora e pelo Peru e que
travou correspondência com António Sérgio, Jaime Cortesão, Bernardino
Machado, etc. A filha reside aqui em Lima e a Karin vai-ma apresentar.
Vou convencê-la a publicar essa correspondência, se valer a pena. Julgo
que valerá. Vem a gente ao Peru para ver as netas e fazer turismo e topa
com rastos de Sérgio, Cortesão, o diabo. Os portugueses andaram
realmente pelo mundo em pedaços repartidos. Poucos mas metediços.
As
macnetas já derreteram a cerimónia e já pedem abertamente brincadeira. À
noite li a Branca de Neve à Emma. Ao lado, disfarçadamente, fingindo
que não era com ela, a Sara prestava a orelha... (Já tem 10 anos, enfim,
a Branca de Neve já vai longe... E todo o caso, já que ali ao lado se
fala nela...)
Leio o Charles Williams, com interesse. Mas a
verdade é que os thrillers, de então para cá (este é de 1953), evoluíram
um bocado. Tenho que pegar no Edmund Wilson e reler o ensaio sobre
marxismo e literatura. Mas, de momento, estou a recuperar da pedrada da
viagem. Puxa-me mais o pé para o hard-boiler. Que se lixe a literatura e
que se lixe ainda mais o marxismo.
A Sara e a Emma já
estão para a escola, que fica aqui perto, Mas, antes de partirem, foram
ao nosso quarto ver se já estávamos operacionais e dar um beijinho. São
giras.
26.6 – Lima. Ontem, visita, com a Geninha, ao Museo
de la Nación. Edifício de arquitectura horrível e pintado num verde
escuro improvável. Mas bem arranjado por dentro e rico de informação
antropológica: as origens do Peru.
Depois, almoço no Ripley.
Passando numa livraria, comprei uns livros: o último Vargas Llosa, um
Turguenev que ainda não tinha (Clara Milich), uma antologia de textos do Cioran (que admiro desde os anos 60) e Uma Vida sem condições,
de Deepack Chopra. Vou lendo o Cioran, o Chopra, ao mesmo tempo que
avanço em Charles Williams. A Emma ofereceu-me um desenho dela, com uma
inscrição. “Do you love me vôvô? And I love you vôvô!” Ganhei o dia.
Depois da compra dos livros fomos buscar as míudas à escola e viemos
para casa. Lá para o fim da tarde fomos ver a Sara e a Emma nadarem na
piscina aquecida, mesmo aqui ao lado.
O Turguenev promete: história sobrenatural, o amor para além da morte. Nada como o excesso.
Hoje à tarde, vamos a casa da Karin, onde estará a amiga com as cartas
do Sérgio, do Cortesão e tudo mais. On va voir ce qu’on va voir.
27.6 – Hoje a Emma faz seis anos. Quando a vi, acabada de nascer, em
Barcelona, era uma pobre coisinha, atacada de meningite, entubada por
todos os lados. Hoje está uma estampa, inteligente, voluntariosa e
meiga. Nem tudo muda para pior.
Ontem fomos a casa da Karin* e
vi parte da correspondência com o tal português. Cartas do Sérgio, dos
dois Cortesãos (Jaime e Armando), do Bernardino Machado, etc. E do
próprio. Documentos importantes, substanciais, para o estudo do Portugal
da 1ª metade do século XX. Vou ver se arranjo, em Portugal, quem se
queira encarregar da edição disto. A própria história do destinatário
das cartas é empolgante.
Vem a gente a um país perdido como o
Peru para encontrar documentos sobre Portugal (país pequeno e sem
importância). E descendentes de portugueses que tiveram alguma
relevância. O mundo é estranho.
Esta noite, um sonho recorrente
(que já me atormentou algumas dezenas de vezes). Acabo o curso de
engenharia, preparo-me para embarcar para Lourenço Marques e, de
repente, ocorre-me que me esqueci de fazer uma das cadeiras do curso...
Como explicar ao meu pai que terei que ficar mais um ano em Lisboa? O
mais curioso é que sei muito bem a origem deste sonho. Mas outro dia
explicarei.
Acabo de ler um ensaio magnífico do Edmundo Wilson:
“The historical interpretation of literature.” Era assim que todos os
críticos deveriam escrever: fluência, transparência, inteligência,
profundidade e...cultura. Basearem o que dizem numa sólida cultura e não
passarem a vida a debitar disparates sem fundamento. Segundo Wilson, - e
fundamenta-se – o dirigismo político dos escritores não teve a sua
origem no marxismo de Marx mas sim na Rússia dos czares. Toda a
literatura russa (a grande e a menos grande) do século XIX se quer política, mesmo quando tem que se velar.
3/7/2003 – Iguazu (ou Iguaçu, na versão brasileira). Um assombro. Para
encurtar a retórica, faço minhas as palavras de Eleonora Roosevelt,
quando aqui esteve: “Poor Niagara Falls!” (“Coitadas das cataratas do
Niagara!”) Um milhão de litros por segundo, um perímetro circular de
2700 metros. Um esplendor de água, força e majestade. Como dizia o Luís,
nosso guia divertido e eloquente, se isto não é a natureza, então o que
é a natureza? Dois dias de caminho por passerelles, até encontrar os
enquadramentos mais adequados ao espectáculo. E que espectáculo! No
segundo dia – anteontem – fomos submetidos aos tratos de polé da Grande Aventura:
viagem de barco, afrontando por três vezes uma das cascatas que se
despejou, em cheio, por cima de nós. A seguir viagem de 6 Kms pelos
rápidos do rio. Para os meus 73 anos, digamos que não está mau. A A
aguentou-se bem. O pior foram, depois, os 8 Kms de viagem, de camião,
com o corpo completamente encharcado. (Ontem à noite, quando comprávamos
umas recordações, numa loja do hotel, a A. notou uma grande quantidade
de Disprin e perguntou à moça vendedora a razão de um stock tão grande.
“Ah,” disse ela, com um grande sorriso, “é por causa da Grande
Aventura!”)
A fadiga leva-nos cedo para a cama. Mas vou lendo o que posso, lentamente. Ainda assim, já devorei 250 páginas de Alice in Exile,
do Piers- Paul Read, autor que descobri, logo à minha chegada a
Londres, em 1978. É filho do falecido historiador de arte, Sir Herbert
Read (autor da famosa Art and Society, que a Cosmos publicou,
nos seus tempos de glória e de Bento Jesus Caraça).Nessa altura comprei
uma cabazada de livros do Read: The Junkers, Monk Dawson,The Upstart, A Married Man, etc. Depois fui comprando tudo o que, dele, ia aparecendo. Alice in Exile
é um substancioso romance de mais de 400 páginas, em letra miúda.
Situa-nos, com eficácia e minúcia de informação, na Londres de antes e
durante a 1ª Guerra mundial e na Rússia da pre-revolução e da revolução.
É um contador de histórias de primeira água (numa linha que vem de
Somerset Maugham), documentando-se bem e beneficiando de tudo quanto o
homem aprendeu de sociologia, história, política e psicologia humana, no
último século. Escreve sem frenesi, quase com doçura, mas é implacável
no que vê e no que conta.
Julgo que a Universidade o desdenha,
mas a perda é dela. No futuro, haverá uma reviravolta qualquer e
tratá-lo-ão como a Universidade agora trata o Zola. Leva tempo mas acaba por chegar lá. Também chegará a vez ao pobre e atormentado Somerset Maugham.
5.7.2003 (sábado) – Em Buenos-Aires, desde anteontem. Vôo rápido de
Iguaçu (1h45m). Fizemos já um tour pela cidade – ampla, europeia (cheia
daqueles bons “cafés” que vão desaparecendo em Portugal), arejada, bela e
povoada por uma gente educada, prestável e sofisticada. “Fizemos” a Av.
Florida várias vezes e perdemo-nos nas Galerias Pacífico. Vou comprando
livros: Borges (uma introdução à literatura americana, El lenguage de
Buenos Aires, um volume com conferências feitas em Harvard, El círculo
Secreto- prólogos- e uma biografia do escritor da autoria de James
Woodall), Howard Fast (Redem-ption), Luís Sepulveda, Epicteto e um
romance de Rex Warner sobre Péricles (comprei e li, há quarenta anos, o Imperial Cesar,
que achei admirável. Vejo-o gora ressuscitado – pelo menos em espanhol,
e não é pou-co... – juntamente c/outros livros seus. Ainda bem que de
vez em quando, vemos a posteridade fazer justiça). Rex Warner era um
grande scholar <(ensinou em universidades americanas), foi director
do Inst. Britânico em Atenas e um grande tradutor de Eurípedes e
Ésquilo. Mas foi, também, um excepcional ficcionista e reconstrutor de
tempos passados – muito antes da vaga que agora anda por aí.
Já
fomos a um bom show de tango tradicional e hoje à noite vamos a um de
tango moderno. Ao fim e ao cabo foi aqui, na Argentina, que o tango
nasceu. E que a Igreja Católica se apressou a fazer proibir, por causa
da sua sexualidade explícita. Um governo mais aberto acabou por mandar a
Igreja à fava (provavel-mente deu-lhe uma contrapartida qualquer) e o
tango foi autorizado. Ainda hoje anda por aí, em força, penetrando em
tudo: na pintura, na escultura, no artesanato...
Ontem, no
tour, visitámos (é obrigatório) o Caminhito. E comprámos umas
bugigangas, uma pintura patusca (as famosas casas que parecem pintadas
por crianças que gostam de usar os lápis de cor todos) e uma cassette de
tango clássico. Toma lá! Aposto que, se o Vergílio Ferreira aqui
tivesse vindo, não teria comprado coisa tão fútil. Por isso terá morrido
sem perceber uma quantidade de coisas importantes. Por exemplo, que não
era nada importante andar tão preocupado com o Prémio Nobel.
Os tours turísticos agora têm uma nova praga: a menina (ou menino) com
uma câmara de video que anda atrás de nós por todo o lado (menos no
urinol), para nos filmar e, no fim, nos impingir uma cassette que nos
terá imortalizado. A tecnologia também serve para isto: para nos lixar a
paciência.
Já agora: entre os livros que comprei, incluí um de Adolfo Bioy Casares, Las Cosas Maravilhosas. Vir à Argentina e não meter Borges e Bioy Casares na bagagem é o mesmo que ir a Roma e não ver o Papa.
Agora, vamos tomar o pequeno almoço e passear por Puerto Madero, onde
almoçaremos. À tarde, uma exposição no Museu de Arte Latino-Americana.
Também, já agora: ontem, ao fim da tarde, fomos à Av. Tucúmon, nº.846 – Casa onde nasceu o autor de História Universal da Infâmia.
A dois passos aqui do hotel. Na esquina do Viamonte com a San Martin,
há um centro cultural Borges mas, aqui, Borges limita-se a ser o
patrono: o sítio nada tem a ver com ele.
6.7.2003, Buenos
Aires – Ontem, sábado, dia bonito, soalheiro, temperatura macia.
Passeio, compras (um livro de Halevy sobre Nietzsche, que há muito
queria ler e só agora, na Argentina, vim a encontrar – numa loja de
saldos, a sete pesos!). Perto do almoço, fomos até Puerto Madero e ali,
nas docas, almoçámos num bufete. Depois do almoço, fomos de taxi ver a
exposição de Kuitca, no MALBA. Trata-se de um pintor argentino que vive
actualmente nos EEUU. Tem uma reputação internacional inteiramente
merecida. Dotado de um métier que faz dele um mestre, a sua temática
traduz uma visão ferozmente crítica do mundo que é o nosso de hoje. A
partir da cama de Van Gogh (objecto que obviamente lhe fecundou o
imaginário) e a partir de uma abstracção cada vez maior, ele leva-nos à
sugestão de um mundo de robots encarcerados, humilhados e ofendidos –
que se parece muito com uma fotografia do real...
À noite,
jantar e tango (moderno). Bom espectáculo – no género. Mas lá tivemos
que ouvir o “Não chores por mim, Argentina”, do Evita. Lembrei-me do Vergílio Ferreira – e trinquei a língua.
Buenos Aires não tem vergonha de ser europeia e tem até orgulho nisso.
Por isso, encontramos aqui tudo quanto de delicioso a «velha Europa»
tinha para nos dar. A Europa, pelo contrário, tem uma vergonha imensa de
não ser americana e esforça-se ao máximo por sê-lo. Resultado, quem
queira recuperar a boa atmosfera de café europeu, venha até Buenos
Aires.
O Chefe da polícia de Buenos-Aires foi destituído e vai
responder em justiça: tinha 333.000 dólares não declarados ao fisco e
escondidos nas Bahamas. Todas as chefias da polícia vão ter que explicar
o património que possuem e a dimensão das suas contas de banco. Onde é
que já vi este filme?
Passear nas ruas, em Buenos Aires, é um prazer. Como eu te invejo, Jorge Luís! Claro que tu não vias – mas lembravas-te.
8.7.2003, Lima – Anteontem foi o nosso último dia de Buenos Aires.
Saímos de manhã a passear pelas ruas ensoalhadas e ainda comprei um
livro de contos de Silvina Ocampo e outro de Borges. Fomos almoçar às
docas e, depois de almoço, passeamos mais um bocado e tomámos um café.
Às quatro e meia vieram buscar-nos para o aeroporto. Viagem de regresso
de mais de quatro horas, com o avião super aquecido. Li o Piers Paul
Read, no meio do inconforto. À chegada tínhamos as macnetas à espera,
apesar da hora tardia – o que deu logo um toque de esplendor à paisagem
nocturna de Lima.
Ontem, almoço na cidade, com a Geninha e a
Sara (e a A. claro), seguida de cinema. Uma comédia com o Steve Martin.
Acabei o Read e encetei o Howard Fast: Redemption. À noite,
depois do jantar, a Emma deu-me o benefício de a ouvir “tocar” a sua
lição de flauta. A Sara tocou flauta e piano. E nós aplaudimos.
Tentativa (quase vã) de continuar o Fast: o sono venceu.
Ultimamente, com uma certa frequência, recordo os tempos em que, em L.
Marques, terminava o ano escolar e começavam as férias grandes... Era um
tempo mágico, prenhe de promessas. Tanta coisa grande ia
acontecer. Os livros que ia ler. Os filmes que ia ver. As coisas que ia
escrever. Estava tudo à frente, no futuro. Agora tenho 73 anos, estou na
última etapa da vida e já não há futuro: e isso é impossível.
Não faz sentido. Não rima com nada. Nada do que sonhei aconteceu. É
certo que escrevi alguns livros: mas não escrevi os que sonhava
escrever. E agora é tarde para arrepiar caminho. Já não há tempo – expressão horrível.
Hoje de manhã. Depois do pequeno almoço e após alguma leitura do Fast,
passeio a pé até ao Wong (centro comercial aqui perto).Tomános café,
comprei chocolates Bacci, encontrámos lá a Geninha com uma amiga e
arranjei maneira de comprar dois livros! Fábulas Literarias, de Tomas de Iriarte e Meditaciones,
de Kafka. Algumas das Fábulas de Iriarte são irresistíveis, como, por
exemplo, a intitulada “El mono e el titiritero”, cuja moralidade é: “sem
claridade não há obra boa”. A dar de purga a alguns dos nossos homens
de letras, que gostam de cultivar o “profundo”, ou seja, o profundamente
opaco.
Quase sem notícias: que bom! Sem notícias absolutamente
nenhumas de Portugal: magnífico! Não ouvir o que pensa do universo a
dra. Ferreira Leite promove abundantemente a felicidade do homem.
9.7.2003 – Lima. Hoje, manhã no Wong, a ler. Almoço c/a Geninha e, de
tarde, visita ao Museu do Ouro do Peru. Tanto ouro deve ter ensandecido
os espanhóis. Com que brutalidade se devem ter lançado a ele, destruindo
qualquer obstáculo que surgisse! Museu rico em espécies, mas sombrio e
um pouco mal fichu. Depois, com o Fast na mão (vou quase no fim),
acompanhámos a Emma à piscina e a Sara ao ténis. De regresso, pego no
Fast, que interrompo para mijoter estas poucas palavras neste diário um
pouco displicente. O Fast (Redemption) é interessante mas não faz esquecer o primeiro que dele li, há cerca de 40 anos: The Winston Affair. Era também um “court- room thriller”, mas com outra espessura e outras implicações políticas.
De Portugal, nada. É como se não existisse. Penso nos amigos, claro,
mas é como se existissem independentemente do Portugalinho. Não chegam
cá ecos. Não chegam, aliás, a quase lado nenhum. Parafraseando o abrir
de um livro que fez furor na minha adolescência, poderia dizer:
“Portugal não exi-ste. Eu sei porque estive lá.”
Interrompo mais uma vez o Fast para pegar no Edmund Wilson. Vou reler “Marxism and Literature” e refrescar as ideias.
11.7.2003 – Lima. Ontem, ida a uma retrospectiva, na Universidade
Católica de Lima, de um importante pintor peruano: Humareda. Pintura
poderosa, enfaticamente figurativa, fazendo referência (mas num tom
pessoalíssimo) a mestres que o alimentaram: Goya, Van Gogh, Vlaminck,
Matisse. As paisagens nocturnas de Lima são de uma força irresistível.
Como o são os auto-retratos e as pinturas alusivas ao seu miserável
quarto do Hotel da Victoria, onde viveu alguns anos.
Almoço na
baixa da cidade e regresso a casa, com passagem pela escola, a pescar
as macnetas. À noite, jantar, com a família toda, numa simpática
Pizzaria.
De aqui a meia hora, partimos para Cuzco. E, durante a
estadia ali, iremos um dia a Machu-Pichu. Regressamos daqui a quatro
dias.
Ontem, na livraria da Católica, comprei além do catálogo
da exposição, um livrinho de Lugones (Leopoldo). Borges fala nele
constantemente, como sendo o primeiro escritor argentino (em cronologia e
qualidade) a dedicar-se ao conto fantástico. Um Edgar Poe lá do sítio.
Personagem estranho: gabava-se de ser o marido mais fiel de Buenos Aires
e consta que se suicidou por ter cometido uma pequena infidelidade. Il y
en a de toutes les couleurs.
12.7.2003 – Cuzco. Chegámos
ontem, por volta do meio dia e meia, a esta cidadezinha que fica a 3400
metros de altitude. Quase de imediato – e apesar do chá de coca que nos
deram no hotel - , cansaço e tonturas. Por volta das quatro, ainda
saímos para uma pequena volta. Ao fim de 300 ou 400 metros, tivemos que
regressar: corri o risco de ter que me sentar no passeio, tal a
exaustão. Regressámos ao hotel, come-mos no quarto e fomos para a cama
cedíssimo. Leitura, pouca: o Herald Tribune e pouco mais.
Hoje, de manhã, um pouco melhor mas não normal. Logo à tarde, uma
excursão pela cidade dos incas. Vamos a ver se aguentamos. Tinham-nos
avisa-do disto tudo, mas como não acontece a todos...
Amanhã, visita exaustiva a Machu Pichu.
Habituados à Europa, acontecem aqui pequenas coisas irritantes: à
entrada no hotel pedem-nos para ficar com o passaporte, para tirarem uma
fotocópia (!) e depois vemo-nos aflitos para o recuperar. Chegámos
ontem ao meio dia e ainda não consegui rehavê-lo. Some democracy! Bem
sei que há problemas de terrorismo mas, francamente!
Uma criada de casa, a tempo inteiro, ganha quando bem paga, 40 contos por mês!
15.7.2003 – Lima. Três dias de altitude, entre Cuzco e Machu Pichu. O
circuito pela cidade e ruínas envolventes, embora cheio de interesse,
deixou-me de rastos. Só em Machu Pichu, mil metros mais abaixo, voltei a
uma certa normalidade. Machu Pichu é como a América: foram ambos
encontrados pelos seus descobridores sem que estes soubessem que os
tinham descoberto... Colombo julgava que chegara à Índia e Bingham, ao
ser-lhe mostrado Machu Pichu, primeiro não ficou muito impressionado e,
mais tarde, julgou que aquilo era Vicalbamba. Definição das Américas:
aquilo que se encontra sem se saber que se encontra.
Machu
Pichu: se eu fosse o Torga, construiria já uma frase lapidar que
imortalizasse um bocadinho o santuário e me imortalizasse muitíssimo a
mim. Mas como não sou, resumo o assombro numa palavra forte e
saborosamente hispânica: Porra!
Visitar Cuzco, os arredores de
Cuzco e sítios como Machu Pichu fazem-nos irresistivelmente meditar no
que tem sido, mais do que o desprezo afrontoso de uma cultura por outra
cultura, a horrível desatenção que o homem tem vindo a ter, ao longo da
história, por aquilo que outras culturas e outras civilizações lhe têm
legado. Até ao principio do século XX, Machu Pichu esteve a ser, não
enterrada no chão, mas devorada pela selva, sem que ninguém lhe
prestasse atenção. O mesmo rural que informou Bingham da existência
daquelas ruínas não teria já informado muitos outros – que o terão
ouvido com um bocejo? E o próprio Bingham – não esteve quase
a demitir, como sem interesse, aquilo que depois lhe deu a glória? Se
um obcecado como Bingham é capaz (quase...) de passar ao lado de um
tesouro (depois de o ter visto) – o que não se dará com o resto da
humanidade mais vulgar? Quantos tesouros não terão sido delapidados para
serem utilizados como material de construção? Gente com a mentalidade
boçal dos construtores civis que conhecemos hoje em Portugal – que lhes
faria demolirem Chartres para fazerem uma das hediondas urbanizações que
hoje desfeiam o nosso país? O convento de S. Domingos, em Cuzco, foi
feito, afrontosamente, no lugar onde estava o Templo do Sol, dos Incas.
Uma religião considerando-se superior a outra e anulando-a, para se
impor a si própria – e à sua imagem obscenamente rica. Diz-se que homem é
o lobo do homem. Também se poderia dizer que as culturas e as religiões
são os lobos de outras culturas e outras religiões.
A injusta
distribuição da riqueza em poucos lugares será tão patente como aqui no
Peru. Crianças que nos seguem por todo o lado, querendo vender-nos
quinquilharia e tratando-nos com doçura e angústia, por “Amigo” – e que,
é certo, nunca irão à escola. Parafraseando o velho Cecil Rhodes, pela
negativa, ter nascido no Peru é não ter tirado um bilhete premiado, na
lotaria da vida. Mas como esta gente é amável, delicada e prestável, sem
ser subserviente!
No regresso a Lima, a Sara, discreta, e a Emma, vestida de Dalmata: importantes marcos desta viagem.
Ando a ler Hornet Flight,
do Ken Follet: literatura que afugentaria o Vergílio Ferreira. My
pleasure, his loss! A tristeza que me fazem certas pessoas irem para a
cova sem terem tido certos prazeres!
16.7.2003 – Lima. Há
quase 30 anos que não via a Karin (a quem, em pequenita, eu chamava a
Ana Karenina) – e vim ao Peru, of all places, para a encontrar, casada e
com quatro filhos. Íamos hoje jantar a sua casa. Mas, em vez disso
fomos ontem ao funeral de uma filha. A ironia dos deuses às vezes é do
pior mau gosto!
De regresso da cerimónia, no carro, falou-se da
morte e... do descanso final. Mais uma vez observei que o “descanso” é
um conceito de vivo. Os mortos, não sabendo que descansam, não podem descansar. Lá se vai mais uma das nossas esperanças dos momentos de desespero...
O resto do dia de ontem foi a leitura do livro do Ken Follett e fazer
uns puzzles com as macnetas, jantar e leitura de uma história (em
inglês) às ditas. Procurei fazer uma leitura expressiva é claro riram-se
muito. Para ser honesto, não sei o que provocou o riso: se a minha
expressividade, se a própria história, em si, ou se o meu sotaque inglês
(visto que elas nasceram com o inglês e eu o aprendi já tarde).
Os jornais – alguns- referem um aparente reacordar do terrorismo no
Peru (o famoso “Sendero Lumi-noso”). Tem havido acções esporádicas. Os
afectos ao actual governo dizem não tratar-se de um recrudes-cimento mas
apenas de uns remanescentes que sobraram da purga feita por Fujimori.
Seriam, ao todo, 175 elementos terroristas acantonados em dois lugares.
Mas a verdade é que a crise continua e Fujimori aguarda no Japão. E,
apesar de um mandato de captura internacional contra ele, o antigo
presidente peruano fala de um regresso iminente à vida política no Peru.
Como, em princípio, se regressar, será preso, só se percebe o retorno,
em termos de golpe militar... On va voir ce qu’on va voir.
Ainda a morte. O “problema” é que não somos capazes de “conceber” o nada
– não somo capazes de o imaginar, de o intuir, de o... sentir. O nada, para mim, é o que, para mim não havia antes de eu nascer. Mas eu não sei o que isso é.
O que me havia de ocorrer no Peru: já tarde, no decurso de uma relação
humana, descobrimos que aquilo que é, na vida, importante para o outro
não é importante para nós. A partir dessa verificação, qual o sentido
dessa relação?
Gente fardada por todo o lado, até nos
cemitérios. Quanto mais visíveis são as fardas, menos acredito na
existência de uma autêntica democracia. Eu sei que o crime abunda e há
sempre a ameaça da guerrilha... Mas, enfim, cá me entendo. Já, em
Portugal, a preocupação dos nossos políticos, e dos nossos media com as
angústias, os problemas e as sensibilidades das forças armadas me
parecem um sinal seguro de subdesenvolvimento.
Em dezassete anos de Inglaterra não dei pelos militares: é assim que concebo uma democracia civil.
Ao ver, num escaparate de uma das boas livrarias de Lima, os livros
dados como “os mais lidos”, e comparando isto com as nossas “escolhas da
FNAC”, sinto vergonha. Aqui, os “livros mais lidos” são quase todos de
grandes ou notáveis escritores. Em Lisboa, as “escolhas” da FNAC e do
público andam à volta das Rebelos Pintos e dos Paulos Coelhos. Cada um
escolhe o que pode.
Hoje, de manhã, em Lima, visita a duas
galerias. Na primeira, uma exposição “ideológica” e fraca de Patssy
Iguchi, na 2ª., uma óptima exposição de Alfredo Torres (professor da
Escola Nacional de Belas Artes e consumado artista). A primeira, Iguchi,
pretende dizer qualquer coisa confusa sobre as mulheres e não nos
convence muito bem de que a pintura seja, para ela, uma
preocupação fundamental. O segundo deslumbra-nos a vista e faz-nos
pensar que o que toda aquela tinta quer dizer não é a nossa principal
preocupação – nem a do artista.
18.7.2003, Lima – Sinais de
subdesenvolvimento: na farmácia, uma mulher peruana dá uma nota de 50
soles para pagar uns comprimidos. Não compra embalagens completas: pede,
de cada embalagem, dois ou três comprimidos, o que, aqui, é corrente.
Quando lhe dão o troco, não gosta do aspecto, nem das notas, nem das
moedas e, visto isso, descobre que, afinal, tem troco e pede a devolução
da nota de 50 soles que tinha inicialmente entregue. A empregada de
farmácia, polida e paciente, vai à caixa e entrega-lhe uma nota em
estado impecável. A cliente olha, desconfiada, para a nota e diz: “Não
foi esta a nota que te entreguei. Quero a minha nota”.
A empregada garante-lhe que a nota está boa. A outra exige uma
declaração em como, se lhe não aceitarem a nota, terá a farmácia de a
aceitar. Etc. (a cena prolongou-se). Comigo passou-se uma cena idêntica
mas, aqui, o chato não foi o cliente mas a caixa. Logo no início da
nossa chegada, comprei no Wong, um livro e um jornal e entreguei uma
nota de 20 dólares (o dólar é aqui moeda corrente). A nota estava
impecável mas tinha, a meio, um pequeníssimo talhe (embora não lhe
faltasse nada). Não ma aceitaram dizendo que estava “rotita”. Trepei
pelas paredes e dei-lhes uma nota de dez dólares, sem nenhum defeito,
mas que já não tinha o brilho original: nova recusa, por estar
“desgastada”. Em Buenos Aires, dias depois, aceitaram-me ambas, sem
pestanejar. E mais que fossem... Um país com estas “obstruções” e a
corrupção que se sabe - onde vai chegar? Note-se que uma das suas
grandes fontes de receita é o turismo – americano. Cuidado com as notas
“rotitas”!
Ontem, de manhã, visita a casa da Maria do Camo
Reparaz, filha do tal português que se correspondeu com Sérgio,
Cortesão, etc. Era historiador, geógrafo e hidrólogo. Deu-me (a filha)
um memorandum sobre o pai, indicando c/precisão o número de cartas com
cada um dos correspondentes, fotocópias de jornais, fotocópia da entrada
sobre o pai na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, etc. E
apresentou-me a mãe (viúva de Gonçalo Reparaz), uma senhora que é
portuguesa (faz questão disso) mas que não fala uma palavra de
português. Foi bonita e, com 83 anos, ainda o é. É de Cernache do Bom
Jardim, da família dos Britos (o actual museu regional, diz-me ela, era a
Casa dos Britos).
O que pude ler da correspondência é de
grande interesse: não são cartas de pura circunstância, pelo contrário,
têm um prodigioso interesse para a história do que foram os tempos de
Salazar. Reparaz é um exemplo soberbo do exilado clássico: tendo sido
professor na Universidade de Coimbra, teve que se exilar em Barcelona;
por causa da guerra civil, teve que ir para França. E acabou no Peru.
Reparaz escreve admiravelmente, com clareza e vigor. Posso dizê-lo
porque a filha me ofereceu alguns trabalhos do pai, entre eles Os Portugueses no Vice-Reinado do Peru (séculos XVI e XVII).
Esta manhã, no Expresso
de (Lima), num excelente artigo sobre cultura, o autor propõe que à
estafada pergunta “Para que serve a cultura?” se responda: “Para acabar
de vez com a vontade de fazer esta pergunta”.
21.7.2003, N.
York – Chegámos ontem de manhã N.York. Os dois últimos dias foram
sobretudo dedicados às macnetas, com uma visita ao mercado índio, pelo
meio. E leitura: terminei o Follett e li uma parte substancial da
biografia de Borges. Fora a criação literária (que foi, afinal, toda
a sua vida), que percurso humano patético, miserável, agarrado à mãe o
tempo todo, falhando no casamento (que “acabou”, mal começado...),
triste, cego, isolado, apesar de alguns amigos e “conhecidos”. No
aeroporto de Lima, a caminho e N.Y., deparo, inesperadamente, com um
novo Parker: Widow’s Walk, que comecei a ler, logo no avião.
Uma delícia: Boston, Cambridge, Spenser, o diálogo brilhante, à
Chandler, a vida fervilhante, implacável, inesperada, vista pelo olhar
desabusado e modestamente culto de Spenser. Repito: uma delícia
(daquelas que o Vergílio Ferreira nunca experimentou.)
Ontem, à
tarde, visita ao Metropolitan: arte do século XX. O que pode fazer pelo
bem público, um conjunto de gente rica e culta (e com espírito de
mecenato) que oferece, por morte, quadros em número suficiente
para fazerem galerias que ficam a perpetuar o nome do doador! Quando
haverá disto em Portugal? Quando se convencerão os Belmiros de que uma
galeria Belmiro, num bom museu, fará mais pelo seu nome póstero do que
todo o dinheiro que ganharam em vida? À noite, jantar com jazz ao vivo:
de boa qualidade. Mas saímos cedo, por causa do cansaço. Uma noite
inteira no avião é obra. No regresso ao hotel, numa livraria aberta à
noite, mais um Parker acabado de sair do forno Back Story (Vergílio, Vergílio!)
23.7.2003 – No avião, de N.Y. para Lisboa. Segunda-feira (ante ontem)
foi dedicada, quase inteiramente ao Museu Guggenheim, na 5ª. Avenida.
Vimos tudo, neste museu, que é uma pérola arquitectónica de Frank Lloyd
Wright: uma grande exposição – de Picasso a Pollock – à custa dos fundos
do museu, outra dedicada a Malevich e outra com a colecção Thanhauser. O
forte do Guggenheim é a chamada arte não-objectiva (eu diria: não
figurativa), visto ter sido essa a obsessão da assessora de Guggenheim,
que o converteu a essa tineta, depois de uma visita ao estúdio de
Kandinsky. (A propósito, Kandinsky foi um exemplo daquilo que mais
detesto: o discurso normativo: a arte deve ser isto e não aquilo. Segundo Kandinsky, a arte não deve
representar a realidade objectiva, mas sim o que se passa no interior
do artista. Simplesmente, muita da melhor arte representou e quis
representar a realidade objectiva. Se Kandinsky fosse menos fanático ou
mais cauteloso – mais subtil, mais inteligente, menos fundamentalista –
teria dito: a mim não me interessa representar a realidade objectiva: prefiro
referir o que ela desencadeia, dentro de mim, de sonhos, ideias,
emoções...) Seja como for, um grande dia, afundados em grande arte (e
menos grande...), com uma breve interrupção para um almoço quase frugal.
O museu Guggenheim é um exemplo de como funcionam as coisas na América:
feito todo com donativos: do milionário que lhe deu o nome, em
primeiro lugar, depois, quadros, colecções inteiras de quadros, salas de
leitura, salas disto e daquilo e pedaços da espiral expositiva que
constitui a ideia genial do Lloyd Wright – tudo tem o seu patrono. Doado
até ao milímetro, sem a intervenção do Estado. Em Portugal é: “então o
Estado não faz nada?” Os Belmiros sabem tudo menos a maneira eficaz de
se imortalizarem. E os portugueses, em geral, julgam que o Estado tem a
obrigação de fazer tudo – até de os pôr a fazer xi-xi.
Ontem,
3ª feira, dia frustrante: saímos, a pé, num passeio até Greenwich
Village e por Greenwich Village. Mas, quando almoçávamos num restaurante
chinês, a chuva começou a cair, às bátegas. Vimo-nos aflitos para
apanhar um táxi que nos levasse ao hotel. Como a chuva continuava forte,
fiz um bom usage de cette maladie qu’est la pluie e acabei a leitura
do Parker.
No caminho para Greenwich, ainda comprei um livro de
ensaios (acabado de sair) do Clive James e uma antologia (de ensaios)
intitulada: The Eloquent Essay. Tanto James com os autores representados no Eloquent
são exemplos luminosos do que o verdadeiro ensaio deve ser: um texto
substancioso mas espiri-tuoso, cheio de achados que se não esquecem e
permeados por aquela vivacidade que não é superficialidade, porque vai
melhor ao fundo das coisas do que a pretenciosa sisudez que encharca,
sobrecarrega e atafulha tantas páginas de tantos ensaístas no fundo
provincianos.
À noite um “musical”: Chicago. Paguei uma fortuna e desassosseguei o Vergílio, lá no Olimpo em que se anichou.
Hoje, passeio pela Broadway (ontem à noite, depois de sair do Ambassador, fomos tomar um irish-coffee, num café-bar frequentado pela fauna inesquecível dos contos de Damon Runion.
No aeroporto comprei dois livros: o último Higgins (ah, Vergílio!) e um outro que promete: O que Einstein contava ao seu barbeiro. Enquanto viajo, vou lendo o Higgins. Daqui a 5 horas, chegaremos a Lisboa. Fim de uma viagem às Américas.
Talvez a última?