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O Holigão

de Maria Isabel Barreno (pp. 33-36)

 Era uma vez um holigã. Um holigã profissional e dedicado ao seu ofício: praticava todos os campeonatos de futebol que apareciam, aborrecia-se no defeso e tentava arranjar ocupações substitutas, arruaças improvisadas e holigações inovadoras. Era tão holigã que é mais adequado chamar-lhe Holigão.
      Se houvesse um intelectual, um sociólogo por exemplo, que com ele falasse, poderia explicar-lhe que aquele comportamento era ainda o mesmo que vinha dos grunhidos pré-históricos, mistura de instinto de alcateia e de marcação de território com o prazer já todo cultural de se julgar superior ao inimigo; comportamento que viera através das eras, mostrando-se em invasões e guerras santas e nacionalistas e étnicas e económicas, até chegar ao vazio de objectivos e ao puro exercício da forma, ao pontapé na bola e ao uivo da bancada.
      Outro intelectual, um defensor das heranças genéticas por exemplo, dir-lhe-ia que havia um gene que ditara, ditava e ditaria todos os comportamento de invasão e espezinhamento do outro.
      Mas não havia nenhum intelectual disponível para falar com o Holigão, nem o Holigão escutaria ou entenderia qualquer intelectual. O seu continente verbal era reduzido e tudo o que excedesse seus limites eram mares desconhecidos e horizontes suspeitos. Considerava “atmosfera” uma palavra difícil e julgava que “buraco do ozono” era uma piada sobre maricas.
      E assim o nosso Holigão prosseguia no seu laconismo interior, no seu pequeno deserto. Se lhe perguntassem porque gostava do seu clube acharia a pergunta incompreensível: o seu clube era o universo, o olimpo, o mundo do sim, da luz, da vitória e da bebedeira colectiva. Igualmente absurdo seria perguntar-lhe por que era um holigão: toda a sua afirmação ontológica cabia aí dentro, sem espaço para distância interrogativa ou analítica.
      Duas das vantagens da época actual são o planea-mento e a comunicação. Os campeonatos são marca-dos com anos de antecedência, o que permite uma boa preparação: levantamento de meios financeiros e, no caso dos profissionais mais dedicados à modali-dade, um simultâneo treino das técnicas de holigação; compra e falsificação de bilhetes, venda de bilhetes falsificados, estratégia da viagem, da implantação no estádio, táctica das acções holigantes, etc.
      O nosso Holigão aproveitava plenamente essas vantagens. Tinha fax, internete, telemóvel. Tinha um mapa na parede com todos os campeonatos - regionais, nacionais, continentais, mundiais - até ao ano 2020. Tinha uma agenda de derrotas e vitórias, de adversários prováveis e inimigos certos. Tinha um ficheiro de métodos de desestabilização, provocação e enraivecimento do inimigo. Tinha um armário, a que gostava de chamar panóplia, onde tinha todas as armas da holigação, das individuais às colectivas, das mais subtis às mais óbvias. Pensava nas épocas antigas como épocas tristes, onde um homem era apanhado de surpresa pelos acontecimentos.
      Nos últimos tempos começara mesmo a aceitar trabalhos extra. Trabalhos pagos, não relacionados com o futebol - mas que serviam de treino.
      Havia cada vez mais causas que necessitavam mercenários corajosos, dissera-lhe um desses seus empregadores habituais: os esfomeados contra o FMI, os pequenos agricultores contra os agro-industriais, os desempregados contra as multinacionais, os países em geral contra os sete gulosos, mais conhecidos por G7, e também a vice-versa, todas as vice-versas e etceteras.
      – As maiorias sempre foram, são e serão silenciosas e cobardes - acrescentara o empregador – Quando muito, capazes de manifestações ordeiras ou quase, de cartazes e de gritos; nada de mais espectacular e decisivo. Por isso é necessário contratar provocadores. Os que arrastam a dócil turba para a paixão destrui-dora. Todos sabem isso, tanto os poderes instituídos como os contrapoderes. É essa a razão por que nin-guém está interessado em acabar com a violência, apesar de todos os pregões contrários: são necessárias reservas, viveiros de gente violenta, mercenários da força. Quando a violência estiver só do lado do poder, o mundo estagnará.
      Tudo isto lhe dissera o empregador tagarela, enquanto ele contava o dinheiro que recebera. Enten-dera parte do que ouvira. Outra parte não. Com nenhuma dessas partes se emocionara, nem se inter-rogara, nem se inquietara. Não gostava de palavreado, a não ser quando aplicado ao futebol. Daqueles trabalhos, fossem eles quais fossem, pretendia apenas o treino estratégico e o dinheiro para financiamento da sua actividade principal.
      Com estes biscates, preparações logísticas, tácticas e estratégicas e constituição de arsenais foi antevendo, com minúcia, um campeonato em país estrangeiro.
      Mais uma vez Holigão se encarregou orgulhosa-mente de toda a organização, por escolha dos seus companheiros. Viagens antecipadas, em grupos de dois ou três, por causa das vigilâncias policiais nas fronteiras, determinou. Viajar isolado não, tornaria cada holigã demasiado vulnerável aos ataques dos outros clãs. Toda a atenção era necessária, cada vez mais estavam os holigãs entalados entre dois fogos, a polícia de um lado, os rivais do outro. O desafio tornava-se ainda mais excitante. A situação prometia: nesse país estrangeiro também havia holigãs organizados, sacanas e filhosdaputa, odiados inimigos.
      Os assuntos foram correndo como previsto. Três dias antes do jogo já tinham tido algumas escara-muças, apenas para fustigar o adversário, desgastar-lhe o ânimo. Nada de excessos e muita prudência, é o toca e foge, recomendara ao seu grupo. Havia sempre alguns desastrados que se embebedavam animalesca-mente, que perdiam o tino, que se deixavam prender. Resultado: chegava-se ao jogo, à grande batalha, com os efectivos diminuídos.
      Teve apenas três ou quatro baixas nesses dias de acções punitivas preparatórias; todos eles elementos medíocres, daqueles que só têm colhões no lugar do cérebro. A frieza é indispensável, por isso os ingleses são os melhores holigãs do mundo, como sempre foram os melhores escravistas, os melhores racistas, dizia Holigão nos pequenos discursos que inventava para manter alto o moral das tropas. O ódio quer-se frio; quente, derrete, concluía. Aplicava ao holiganis-mo todos os parcos conhecimentos adquiridos na frequência de uma acidentada escolaridade obriga-tória.
      No dia D, no estádio, juntaram-se todos. Estratégia de compra de bilhetes apurada. Holigão olhou em volta: lá estavam os seus quarenta homens, oito grupos de cinco. Tinha crença nestes números, particular-mente no oito. Dispostos como estavam, cada grupo desencadeando seu motim, que se alastraria como mancha de óleo, em breve teriam garantida uma área extensíssima de refrega total.
      E assim foi, ao primeiro pretexto.
      Nem haveria necessidade de pretextos naquele mundo de ódio frio em que se movia o Holigão e de onde ele geria os seus comparsas. Mas, abstracto e seco como era esse seu mundo, precisava de pontos de ligação ao confuso, tumultuoso, apaixonado e complexo universo humano: pontos de extracção de energia, pontos de injecção de violência.
      Holigão aproveitou o pretexto com destreza, seus quarenta homens foram soltando iniciativas na girândola previamente consertada. Em breve todo o lado norte da arquibancada era um ardoroso campo de batalha, com armas sorrateiramente trazidas, com armas engenhosamente improvisadas.
      Foi neste ponto vertiginoso da tarde que Holigão a avistou. O que estava aquela mulher a fazer ali? O seu mundo não tinha mulheres como protagonistas. As poucas que entravam na cena da sua atenção ficavam em dependências reservadas, em margens, ridículos e ostracismos, como as claques femininas do futebol americano, de perna ao léu e pompons coloridos nas mãos, com saltinhos e gesticulações diversas.
      Viu outra vez a mulher, entre os altos e baixos das ondas da multidão. Como conseguira ela, como ousara, introduzir-se ali? Forte, loura, esplêndida. Como se aguentava no meio daquela tempestade bélica? Com um bastão na mão direita, outro na esquerda, ambos brandidos com maestria. Holigão quase se distraía das suas lutas para a olhar, para a contemplar, para procurar vislumbrá-la quando novas ondas humanas a engoliam na invisibilidade. Era uma amazona, uma valquíria, uma deusa.
      Holigão apaixonou-se tão instantanea e fulgurante-mente quanto adoecem de contágios os que não têm vacinas nem defesas naturais constituídas.
      Socando e esquivando-se tratou de abrir caminho. Até ela. Não conhecia a força que o empurrava, mas uma atracção indomável, uma dor física impunha-lhe aquele caminho. Lembrou-se de histórias de sereias com seus cantos chamando os marinheiros para o fundo do mar. O que faria se chegasse ao pé da esplêndida amazona? Apertar-lhe-ia o pescoço, para possuir, conter, dominar toda aquela força que o puxava, que lhe entrava pelos poros? Envolvê-la-ia nos seus braços e pernas, sugaria a boca, a pele branca, penetraria aquele corpo majestoso como um templo?
      Poucos metros o separavam já da sua deslumbrante guerreira. Então, sob o seu olhar gelado, um dos seus quarenta homens aproximou-se dela, com pesada barra de ferro assestou-lhe uma pancada bruta na cabeça, o crânio cedeu, abriu, a mulher caiu sem um grito.
      Holigão lutou para chegar junto do corpo, um entre vários. Consegui, pensou por fim, quando os pés e as pernas começaram a rarear à sua volta. E de repente estava só, ajoelhado junto à amazona de cabeça desfeita. Segurando ainda a arma de combate, uma pesada barra de ferro, igual à de vários de seus companheiros e coberta de sangue em vários estados de secura e humidade, contemplava, paralisado. Não lhe ocorria nenhum gesto realizável.
      Assim o surpreendeu a polícia. Holigão foi preso, julgado e condenado pelo assassínio de várias pessoas, entre as quais a esplêndida amazona que avistara no único instante de amor da sua vida.