Actividades‎ > ‎Publicações‎ > ‎Mealibra‎ > ‎Série 3‎ > ‎Número 13‎ > ‎

Poesia de Nuno Júdice

"Alquimia", "UT PICTURA POESIS (variante com flash)", e "Jantar" (pp. 67-68)

ALQUIMIA

Na farmácia de Paracelso, em Bratislava, os coleccionadores
de unguentos debruçam-se sobre chaminés alquímicas, provetas de
prata, colheres de medidas certas, usadas nas operações
em que a matéria se transforma noutra matéria, soltando
os espíritos elementares. Há quem procure o sentido para essas mutações,
e queira saber o que significam os emblemas, os signos, as marcas
que se espalham pelas paredes, numa ordem cuja lógica se perdeu. No entanto,
os seus olhos continuam cegos para o essencial: o tempo,
que começou a ser contado no dia em que Paracelso aqui chegou,
parou quando a areia acabou de descer. Então, uma rixa de bêbedos
pôs fim à sua vida. Pouco importa! É verdade que ele descobrira a chave
dos enigmas: a correspondência entre a alma e as coisas físicas, o caminho
que conduz ao hemisfério sombrio das emoções, a luz que apaga
a depressão dos homens.

25-9-98

UT PICTURA POESIS (variante com flash)

Podia considerar a poesia, como a pintura, 
própria para um retrato de geração. O lugar ideal 
para nele colocar amigos e conhecidos, família 
e parentes, e até os inimigos, mas estes incluídos 
num género específico - a sátira - de que 
não iriam sair muito favorecidos. Todos prontos 
para o flash - e já está, os rostos mais sérios 
do que outra coisa, alguns ainda despenteados do 
vento, e só as mulheres mais novas atirando um sorriso 
para a frente, o que se explica porque é a idade 
em que a vida ainda não fez das suas. Mais tarde, 
quando desse por que o tempo 
passara, e tudo o que conheceu foi arrastado 
por ele, poderia abrir o álbum. Um a um, cada um dos 
rostos regressaria, intocado, contando-lhe a história
 antiga. Ao ver uma ou outra das amigas 
de outrora, poderia até voltar a sentir o calor dos seus
corpos, a aproximação dos lábios, numa ânsia 
que a noite favorecia, e tudo o resto que nem 
sempre se pode contar. Mas viu que tudo 
estava desbotado, que as cores tinham empalidecido, 
que os fundos já não tinham o cheiro do campo, que o próprio 
mar desaparecera de trás das últimas colinas. No fundo, 
estava-se a ver ao espelho: ele próprio, o mais 
desbotado dos retratos; e a sua vida, a mais apagada 
das memórias.

durban
12-5 -99

JANTAR

Em frente da japonesa que lia um livro sobre o 
Cosmos, um homem pediu ao criado que lhe cortasse a pizza
às fatias: duas, e depois outra vez, mais duas. O cosmos dele
ficou assim repartido, em quatro, no prato, enquanto 
a japonesa lia. O cosmos dela, 
esse, continuava inteiro; e a sua expansão 
infinita não parou, durante esse jantar, ao contrário 
da pizza que foi desaparecendo no prato do homem.

S. Paulo
27-4-2000