O dia a dia consome-nos a todos o Verão vem muito longe e mais perto é o
longo Inverno e pior ainda o Natal das compras e jantares os postais
acumulando à espera de resposta a árvore atrasada e de repente esta
promessa à Leonor de uma fuga para celebrar em comum uma data sempre
adiada por imprevistos um deles funeral outro nevão record e a coragem
da retirada chegou finalmente
Nem foi preciso salto longínquo uma vila à beira-mar em Connecticut bastou Niantic ali distraída no caminho para New York com direito a registo uma vez apenas na sinalização da estrada 95 de nem se dar por ela mas a busca de um Bed and Breakfast na Internet mostrara fotografias apetitosas e lá fomos pedir refúgio As leis de Murphy entretanto suspensas a casa real bem melhor que na fotografia publicitária cheirava a árvore de Natal cozy e quaint lavada em luz de um dia crispy do frio que torna o ar límpido e tinge o mar de azul intenso e fundo A Sue e o Dave afáveis insistindo feel totally at home que ela era toda nossa sem espaços proibidos
Do quarto generosas janelas abraçam esse mar-rio a circundar a casa numa península metida estuário dentro cristalino tudo na vista mas na pele o afago morno da lareira e no ouvido o embate de dois copos no ar produzindo o som que os gregos inventaram para completar à mesa a experiência plena dos senti-dos ali igualmente a única que faltava naquele silêncio de uma serenidade de éden
As horas deslizaram suaves e ternas eternas tam-bém em passeios na praia calcorreando areia branca de peito afrontando a brisa cortante a gelar o rosto
Paragens intervalando café para aquecer o dentro e mergulhar num livro ou entrar num Christmas shop e depois sair para deambular por entre casas reais de postal de Natal americano com o touch festivo da quadra E de repente num restaurante uma orquestra de flautas duas dúzias de putos unissexo indecisos na puberdade uniforme e indecifradamente vestidos a animar a refeição com o Little drummer boy e o White Christmas e Go tell it on the mountains e as horas desli-zando sempre em minutos de mel E um Book Barn mesmo barn estantes de madeira tosca inventando espaço para arrumar tanto livro a Leonor e eu já carregando os nossos próprios perdendo-nos naquele labirinto a namorar outros e separando para levar mais este e aquele os sofás velhos de gente se sentar a ler ocupados por gatos e cães Um panfleto a insurgir-se contra as leituras cliché da quadra encabeçadas pelo Christmas Carol do Dickens e de seguida uma outra de sugestões alternativas como Quietly Thinking Over Things at Christmas de uma tal Carol Bly oferecendo conselhos género Do not get so busy making a living that you forget making a life por aqui e por ali notas de humor espalhadas pelas estantes uma delas a abarrotar de livros com o letreiro The Pestiferous Little Corsican uns duzentos sobre ele mesmo o general que foi acabar bona parte dos seus dias em Santa Helena E uma infindável secção sobre o mar navegação construção naval aventuras marítimas e marinhas barcos veleiros domínio dos oceanos e defesa deles tantos que eu no meu país de marinheiros nunca tal enxergara
Por coincidência eu estava mesmo enfronhado na leitura de grosso tomo sobre o Infante D. Henrique de autor inglês mas editado umas milhas mais abaixo em New Haven à conta da Yale e não desperdiçava um minuto galvanizado a aprender coisas não aprendidas na adolescência de cuja ignorância eu próprio já há muito deveria me ter auto-curado
Saber que o Infante mentiu ao papa para lhe cair nas graças a dizer que conseguira libertar dos sarra-cenos a Madeira e recuperar os seus habitantes para a fé cristã E outras coisas como a rapinagem em Ceuta mais ter-se ele antecipado pelo menos em meio milénio à doutrina militar de George Bush (filho de) do preemptive strike desforrando-se nos muçulmanos antes de eles erguerem uma espada e outras virtuosas benfeitorias como o abandono do Infante Dom Fernando em Fez ou ainda aqueloutra de encher o papa de balelas reclamando soberania nas Canárias e dele sacando uma bula em seu favor levando depois o enganado Pontífice a desdizer-se quando da aldrabice veio a dar-se conta Estes e outros virtuosos feitos de levar a gente a pensar que o mundo hoje não vai afinal tão ruim como apregoam pois vêm de longe as pelintrices
O gozo de mesmo tarde na vida eu aprender estas estórias aqui em frente ao mar de Connecticut o sol frio lá fora o azul revigorante no céu e mar e nos intervalos mais umas voltas pela paisagem apolínea e plácidas árvores bucolicamente despidas pelo Inverno e por acaso na rádio do carro a Pastoral de Beethoven como se de encomenda e sempre sem ouvir notícias nem ler jornais na sensação prolongada de ataraxia
De repente em Old Saybrook já noite uns graus descaídos abaixo do zero centígrado multidão na rua para uma parada de Natal alegria nos bafos marching bands trompetes e clarins carros de luz cor e graça a completa antítese de uma procissão triste na minha ilha alegria a derreter a neve no chão
A lembrança de um fim-de-semana assim não ter história assalta-me aliada ao sentimento de vergonha não por causa do Infante e suas trapaças mas por estar mergulhado nesta felicidade pois Tolstoi tinha razão no Anna Karenina todas as famílias felizes são felizes da mesma maneira e todas as famílias infelizes são-no à sua e estas é que dão boa literatura pois ninguém quer saber da felicidade dos outros Tese que sem sucesso David Lodge tentou derrotar naquele seu Paradise News onde tudo corre bem e termina feliz mas ninguém acha piada nem mesmo por ser inesperado num romance assim de autor como ele porque ao fim e ao cabo as pessoas acham que nos tempos de agora não há direito à felicidade pois o Infante fez das suas há anos bastantes para não as repetirmos e deveria este mundo ser um reino velho porém com emenda
Assim este nirvana fica aqui só para nós consumido em silêncio e às escondidas porque ainda somos gente com vergonha coisa que dizem já não abundar hoje no mercado mas por vergonha ainda vamos procurando tê-la

Nem foi preciso salto longínquo uma vila à beira-mar em Connecticut bastou Niantic ali distraída no caminho para New York com direito a registo uma vez apenas na sinalização da estrada 95 de nem se dar por ela mas a busca de um Bed and Breakfast na Internet mostrara fotografias apetitosas e lá fomos pedir refúgio As leis de Murphy entretanto suspensas a casa real bem melhor que na fotografia publicitária cheirava a árvore de Natal cozy e quaint lavada em luz de um dia crispy do frio que torna o ar límpido e tinge o mar de azul intenso e fundo A Sue e o Dave afáveis insistindo feel totally at home que ela era toda nossa sem espaços proibidos
Do quarto generosas janelas abraçam esse mar-rio a circundar a casa numa península metida estuário dentro cristalino tudo na vista mas na pele o afago morno da lareira e no ouvido o embate de dois copos no ar produzindo o som que os gregos inventaram para completar à mesa a experiência plena dos senti-dos ali igualmente a única que faltava naquele silêncio de uma serenidade de éden
As horas deslizaram suaves e ternas eternas tam-bém em passeios na praia calcorreando areia branca de peito afrontando a brisa cortante a gelar o rosto
Paragens intervalando café para aquecer o dentro e mergulhar num livro ou entrar num Christmas shop e depois sair para deambular por entre casas reais de postal de Natal americano com o touch festivo da quadra E de repente num restaurante uma orquestra de flautas duas dúzias de putos unissexo indecisos na puberdade uniforme e indecifradamente vestidos a animar a refeição com o Little drummer boy e o White Christmas e Go tell it on the mountains e as horas desli-zando sempre em minutos de mel E um Book Barn mesmo barn estantes de madeira tosca inventando espaço para arrumar tanto livro a Leonor e eu já carregando os nossos próprios perdendo-nos naquele labirinto a namorar outros e separando para levar mais este e aquele os sofás velhos de gente se sentar a ler ocupados por gatos e cães Um panfleto a insurgir-se contra as leituras cliché da quadra encabeçadas pelo Christmas Carol do Dickens e de seguida uma outra de sugestões alternativas como Quietly Thinking Over Things at Christmas de uma tal Carol Bly oferecendo conselhos género Do not get so busy making a living that you forget making a life por aqui e por ali notas de humor espalhadas pelas estantes uma delas a abarrotar de livros com o letreiro The Pestiferous Little Corsican uns duzentos sobre ele mesmo o general que foi acabar bona parte dos seus dias em Santa Helena E uma infindável secção sobre o mar navegação construção naval aventuras marítimas e marinhas barcos veleiros domínio dos oceanos e defesa deles tantos que eu no meu país de marinheiros nunca tal enxergara
Por coincidência eu estava mesmo enfronhado na leitura de grosso tomo sobre o Infante D. Henrique de autor inglês mas editado umas milhas mais abaixo em New Haven à conta da Yale e não desperdiçava um minuto galvanizado a aprender coisas não aprendidas na adolescência de cuja ignorância eu próprio já há muito deveria me ter auto-curado
Saber que o Infante mentiu ao papa para lhe cair nas graças a dizer que conseguira libertar dos sarra-cenos a Madeira e recuperar os seus habitantes para a fé cristã E outras coisas como a rapinagem em Ceuta mais ter-se ele antecipado pelo menos em meio milénio à doutrina militar de George Bush (filho de) do preemptive strike desforrando-se nos muçulmanos antes de eles erguerem uma espada e outras virtuosas benfeitorias como o abandono do Infante Dom Fernando em Fez ou ainda aqueloutra de encher o papa de balelas reclamando soberania nas Canárias e dele sacando uma bula em seu favor levando depois o enganado Pontífice a desdizer-se quando da aldrabice veio a dar-se conta Estes e outros virtuosos feitos de levar a gente a pensar que o mundo hoje não vai afinal tão ruim como apregoam pois vêm de longe as pelintrices
O gozo de mesmo tarde na vida eu aprender estas estórias aqui em frente ao mar de Connecticut o sol frio lá fora o azul revigorante no céu e mar e nos intervalos mais umas voltas pela paisagem apolínea e plácidas árvores bucolicamente despidas pelo Inverno e por acaso na rádio do carro a Pastoral de Beethoven como se de encomenda e sempre sem ouvir notícias nem ler jornais na sensação prolongada de ataraxia
De repente em Old Saybrook já noite uns graus descaídos abaixo do zero centígrado multidão na rua para uma parada de Natal alegria nos bafos marching bands trompetes e clarins carros de luz cor e graça a completa antítese de uma procissão triste na minha ilha alegria a derreter a neve no chão
A lembrança de um fim-de-semana assim não ter história assalta-me aliada ao sentimento de vergonha não por causa do Infante e suas trapaças mas por estar mergulhado nesta felicidade pois Tolstoi tinha razão no Anna Karenina todas as famílias felizes são felizes da mesma maneira e todas as famílias infelizes são-no à sua e estas é que dão boa literatura pois ninguém quer saber da felicidade dos outros Tese que sem sucesso David Lodge tentou derrotar naquele seu Paradise News onde tudo corre bem e termina feliz mas ninguém acha piada nem mesmo por ser inesperado num romance assim de autor como ele porque ao fim e ao cabo as pessoas acham que nos tempos de agora não há direito à felicidade pois o Infante fez das suas há anos bastantes para não as repetirmos e deveria este mundo ser um reino velho porém com emenda
Assim este nirvana fica aqui só para nós consumido em silêncio e às escondidas porque ainda somos gente com vergonha coisa que dizem já não abundar hoje no mercado mas por vergonha ainda vamos procurando tê-la
