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Número 5

  • Das Literaturas - "O Tempo da Imperfeição", por José Manuel Mendes (pp. 11-16)
A insignificância que somos. Não a perder pelo caminho. Não a esquecer quando o triunfo nos cinge à efémera eternidade dos deuses. Quando o infortúnio corrói ou aniquila. Trazemos algures cidades empardecendo, destroços a haver, cantos que o nevoeiro apaga e calcina. Frágil é sempre a própria luz. Por muito que arrepie, nas estações sem a garra da finitude, o seu voo de flamingo. Dela nascerão a cinza e a pedra, a memória delindo, limos que o rio abandona em nunca mais.
22.5.93.

     a tua voz como lugar de avidez, tão erva e lua. Serpe, vento, alga. De súbito, a distância apagada na lousa e ambos escrevendo a uma só mão os nomes, as casas por haver.
3.1.97.

     Plenitude. Jugulada por uma impossibilidade. Este rio de lágrimas e cinzas, movimento sem medida nem aragem, absurda distância entre o desejado e o realizável. E o deserto do mundo. A última estrela. Apagando-se.
     Do outro lado, raízes. Uma unidade que sobreviveu a múltiplos calafrios. Dorida imagem presente do que foi caminho. 
     O abismo nas águas apartadas.
30.5. 99.

     Janine, Robert. Manuel, Helena. Teresa, Daniel. Francisco, Luísa. Helena, Pedro Duarte. Graça, António Manuel. Ricardo, Alcina. Serge, Annie. Marta, José. Manuela, Carlos. Elisabeth, Gregory.  Eduardo, Maria. Berta, João Adriano. Michel, Nicole. Francisca, Paulo. E tantas, tantos ainda. Vidas doadas ao longo de uma vida. Por entre mil angústias e muralhas, mil sóis sempre além do constrangimento. Mulheres de terra e água, mulheres em cujos ombros principiam o infinito, a ave, a perfeição, urnas salinas (Herberto Helder), pain des étoiles (René Char), olho-as e comovo-me, porquê de súbito a cidade vazia, o baloiço parado sob a lua, os telhados que não verei?, olho-as, do sonho esfacelado nem um ramo de ternura, tudo desfeito como se em mim fossem guilhotinados os que no júbilo permanecem, olho-as e absolvem-me, trazem o vento que bebo, sua brevidade e seu arbusto. Mas o minuto que falta é escuridão apenas. Janine, Robert. Manuel, Helena... 
2.99.

     Tahar Ben Jelloun, L’Auberge des Pauvres: “Un amour qui n’est pas sujet de doutes et de tempêtes n’est pas tout à fait de l’amour, c’est autre chose. (...); l’amour, c’est du risque, du danger et de l’incertitude permanente, le plaisir est alors plus fort. La raison n’est pas toujours bonne. Faut pas croire, mais trop de raison dans les sentiments, ça les abîme souvent.”
27.3.99.

Ao telefone
 - três depoimentos
 1. Almeida Garrett marcou, com alguns outros, as minhas leituras de adolescente. De então para cá, sobretudo a partir das propostas dos que melhor o vêm estudando, reli-o sempre com revigorado apreço e proveito. Personalidade singularíssima, deixou uma obra de rara diversidade e riqueza, engenhosa, inovadora, crescentemente assumida à luz do romantismo europeu e de um aprofundamento da nossa tradição lírica. Livros como Viagens na Minha Terra ou Frei Luís de Sousa, a par da restante dramaturgia e porventura mais do que o legado poético, foram acolhidos com alvoroço por várias gerações de narradores, leitores e profissionais do teatro. As Viagens têm, de resto, elementos fundadores de uma literatura que se estatuiu na modernidade. Por isso, o que nelas é crónica e crítica, efabulação e questionamento, digressivismo e sortilégio formal tocou, no chamado período formativo, autores cimeiros do passado e de hoje, José Saramago incluído. As investigações em torno da recepção de Garrett até ao presente bem o comprovam.
 Menos conhecida será, entretanto, a intervenção do escritor na vida pública, por entre vicissitudes que lhe permitiram conhecer a oposição ao miguelismo e o exílio, a experiência revolucionária e os sobressaltos, os recuos que lhe sucederam. Considero admiráveis, por exemplo, as suas páginas parlamentares – pela viveza e pelo rigor, por uma osmose feliz entre poder oratório e performatividade, solidez de conteúdo e elegância de estilo. Permito-me lembrar o facto de lhe ter pertencido a primeira iniciativa legal no sentido de estabelecer um regime de protecção dos direitos de propriedade literária e artística. E tal iniciativa, sublinhe-se, não perde no confronto com as congéneres concebidas na Europa do seu tempo. A edição dos seus discursos, ainda de acesso difícil, decerto confirmará a opinião que emito.
Frágil e contraditório, mundano e brilhante, de raiz melancólica e – como acentuou Gregorio Marañón – radicalmente romântico, lúcido e multiforme, a Garrett permanece destinado um lugar de vulto na nossa memória cultural. Apraz-me saber que aí o encontro quando amiúde o revisito.
11.99.

     2. Não sei se se lê hoje mais e melhor. Os números são contraditórios e, talvez valha a pena dizê-lo, não são tudo. Os números nunca são tudo. O esforço institucional empreendido no sentido da difusão do livro e do incremento à leitura, sobretudo por parte do IPLB, parece-me digno de admiração e solidariedade, mesmo estando certo de que é possível ir mais longe nas políticas e nos meios adoptados. Não direi o mesmo de outros departamentos públicos, o Ministério da Educação por exemplo. Aí, mesmo enaltecendo as progressões detectáveis nos últimos quatro anos pela mão da minha amiga Teresa Calçada, o saldo não me conforta. 
     Gostaria de acompanhar o contentamento e o optimismo daqueles que, como depreendo da pergunta formulada, acham que o Prémio atribuído a José Saramago opera prodígios, resolve problemas endémicos, faz vender a um outro ritmo as obras dos autores portugueses, no País e um pouco por toda a parte, ajuda os escritores, os editores e os livreiros a viver numa situação de menores constrangimentos, salva a língua portuguesa e o nosso património em risco, corrigindo a inércia das instituições. Mas não o farei. O Nobel foi a consagração de uma personalidade decisiva da literatura contemporânea, foi o nosso instante de triunfo, de sublimação, a hora intensíssima e breve, e, embora reconheça os seus efeitos, penso que não poderá exigir-se-lhe que substitua o que a múltiplos agentes incumbe, o que cabe ao Governo desde logo, às associações e grupos de iniciativa cultural, a todos nós, certamente relapsos à auto-crítica em circunstâncias como esta... 
(Dia Mundial do Livro / 99)

     3. As Casas de Escritores encontram-se, regra geral, à margem de dinâmicas culturais que delas façam um lugar de visita, investigação e iniciativa. Deverá mesmo dizer-se que, em vários casos, se perdem num espaço de indiferença e abandono. Por ausência de acções políticas que articulem diferentes níveis de responsabilidade? O facto é que ninguém, a meu ver, está isento de erros, de inércia ou negligência, retardamento ou insensibilidade.
     Torna-se indispensável proceder a um inventário criterioso das Casas existentes, definir com precisão o estatuto e o regime jurídico que lhes cabe, atenta a diversidade de situações, e estabelecer programas tendentes a vitalizá-las, seja no âmbito da fruição imediata, seja no da disponibilização de espólios e estímulo ao trabalho de pesquisa e criação, seja ainda em tudo o que respeita a protocolos de divulgação e interactividade. Mas, em algumas situações, impõe-se começar pelo mais urgente – o restauro e conservação dos bens, móveis e imóveis. 
    Decerto que não são comparáveis realidades como as Casas de Fernando Pessoa, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, José Régio, Vitorino Nemésio, Fernando Namora, ou, para ir atrás no tempo, Sá de Miranda, Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz. E, a par destas, numerosas outras. Daí a complexidade dos problemas a resolver. Complexidade, porém, não bloqueadora nem desinteressante. A circunstância de ter sido anunciado pelo Ministro Manuel Maria Carrilho um projecto de estudo e decisão, a curto prazo, das orientações a seguir, no diálogo com as entidades pertinentes, só pode merecer o meu aplauso e a melhor das expectativas.
5.99 ?

E agora a guerra. É preciso erguer os olhos do chão, buscar de novo as palavras que são o clamor e recusa, que são a paz. Acrescentar qualquer coisa à terrível legenda de Dylan Thomas: “Rage, rage against the dying of the light”. Qualquer coisa. Em que mar de naufrágio encontrarei o meu escaler? Quando partir?
30.3.99.

     Chove. Não pára de chover. Sinto a garganta. E uma irritação de garoto em véspera de atirar pedras às próprias sombras.
15.2.97

     c’est toi qui a les mots, pas moi. as palavras suspensas sobre o abismo, presas a uma viga que a todo o tempo poderá ceder, rendidas perante o voo de oiro de cada permuta, cada pátio por haver. se a viga cede? colheremos o orvalho e o lume no silêncio após a fractura, esse silêncio que preserva o indiscernível e a infinitude.
19.2.97.

Romance inacabado – seis fragmentos

     Pedra do Urso, rótulo numa garrafa de vinho. Interessou-me a metáfora em estado de possibilidade ou latência, uma metáfora justaposta ao topónimo, é certamente referencial a designação, e interessou-me a estória que espreita por detrás das palavras. A pedra onde o urso se enternecia, olhando a paisagem, à hora dos sinos? O fraguedo que abrigava a fera, a fera concreta ou o ícone em que um múltiplo se inscrevia, nos intervalos do terror? Que lendas e rimances, quantos tempos no tempo anónimo de gerações devoradas pela erosão e pelo esquecimento? Tomávamos chá com torradas e, por causa da constipação, comprimidos de paracetamol. Trazíamos no mais íntimo a crepitação e a elegia, um aroma de lilases ou anonas, como dizer o que no corpo nos transfigura e reinventa?, éramos ainda o que já ontem fôramos, a fábula do porco tinha encontrado uma outra, a do rapaz que se metamorfoseara em figos burros para vender na feira e generalizar a estupidez, tão raro uma leveza assim, a noite principiaria por entre adágios de beleza. Observava o perfil das casas na Almirante Reis, sabes que sempre vi a Almirante Reis como uma nervura saburrada na folha da cidade?, vou escrever de forma simples, uma avenida feiona e triste?, esmaecia a luz, já perto do Martim Moniz apareceriam os cães, tufos de gente, a nevrose do tráfego, seguíamos de mão dada e o mundo fazia-se de avenca e azul.
     Anoto estas impressões enquanto aguardo a partida do avião. A sala quase vazia. Um cansaço bom, quase sonolência. Lassitude talvez. Tenho fome. Lembro-me da ternura de uma alusão tua às fomes que me devoram e movem. Sorrio. E é por dentro do sorriso que repouso no ombro que me dás. O ombro sereno onde marulham desejo e agasalho, fragmentos de epifania.


***
Gostarmos um do outro. Desnudarmo-nos ao sol da plenitude. Não apenas um diante do outro, dentro do outro. Também assim: cada um até ao mais íntimo de si mesmo. E numa tal fluidez de águas congraçadas inventar o azul que fica além do azul.
***
     fala-me a tua ausência em cada lugar hoje apagado, todos os lugares por onde os dias me levam ainda, resíduo e cinza, talvez escória e oclusão na cidade te reencontro e não tenho, na casa e nas ruas, naquele baloiço numa noite quente de luar, no fascínio do rosto com que me olhavas à hora múltipla de naufragar. olha, é outra vez o cão a que deste salsichas, a biblioteca do bairro e uma alfarrobeira mexicana por saber, a bica numa mesa em que acordo no teu gesto e no teu gesto me ilumino. volto ao silêncio da sala, música e quietude, ou então jogo e júbilo, maturação. e somos o que fomos, crianças no voo mais humano da perfeição. falta ao mês de julho a tua mão na minha mão, falta-lhe o que a memória desejaria doar à vida não refeita. e assim, lentamente, fica o barco no cais, as águas gelam, nenhuma árvore vem iniciar a primeira manhã do mundo.

***
   Atravessa o jardim em direcção à porta de saída. O nevoeiro é agora uma espécie de sujidade da noite. Faz frio. Ouve o eco dos próprios passos enquanto caminha. E, de novo, a voz do médico: Yes, it is. A cancer, Doctor? Is it possible? Aí tem a cidade, os plátanos, o sossego das ruas. A luz dos candeeiros. Segue em direcção ao Tamisa, irá jantar?, é apenas uma sombra entre prédios que a invernia escureceu. Leva na mão um romance de Thomas Hardy, The Mayor of Casterbridge, e alguns discos, entre eles as Sinfonias on Ovid’s Metamorphoses, Nos. 1-3, de Dittersdorf, comprados, no início da tarde, em lojas do Soho. Vai só, eis chegados os dias de ir só até uma árvore, uma pedra, e gravar o avesso, a ausência. Pensa obsessivamente em Kafka. Porquê? Margaret, a enfermeira, trazia chocolates e ramículos de azevinho no bolso da bata. Os sinos tocavam ao longe, muito ao longe, depois dos telhados onde a chuva repousara.

***
     procura a mesa na esplanada. aquela, ao fundo e à direita de quem entra, ao pé da vidraça. uma cadeira ficará vazia. é outra vez domingo, passará a tarde entre livros e rumores, nas margens do Sena, la peine est venue après la joie, et les jours s’en vont, pede peixe e água, escreve na toalha versos de Rilke e Breton, impressões da passagem pelo Chatelêt, onde uma noite viu Barbara em concerto. chove. olha a rua e o tempo da imperfeição, o rosto amado, esse rosto que lhe sorri desde a raiz de tudo, passam velhos e cães, um homem de bicicleta, papéis amarrotados que o vento move. tenta um fio de azul, um fio que não há. e volta àquele lugar do ocaso em Villejuif, árvores nuas além do pátio, um cheiro a éter e a rosas, o sósia de Jospin a dizer-lhe on doit jamais attendre le dernier mot. esperanças contrabandeadas na fronteira, ilusão e desespero frente a frente? está frio, acende um cigarro. escolhe o mesmo gelado de outrora, pistacho e baunilha. et un petit café, s’il vous plaît. não chamará um amigo, não visitará ninguém. até à hora do avião irá no encalço de uma luz afinal erradia, em debandada.
     A cidade e o frio. Atravessamos as ruas num enlevo de véspera, na anulação das chatices do tráfego, um e outro entre maresias de agosto à claridade do azul. Tudo em nós se faz harmonia, desejo, cumplicidade. Partilhara contigo, durante o almoço, aquilo que penso sobre a crise do escritor em mim. De forma implacável. Quis que soubesses até que ponto tenho consciência do que se passa, onde levo o diagnóstico, quais as soluções ainda possíveis no limiar do abismo. Mais ou menos a concluir, descobri toda a leveza das palavras para, com verdade, te exprimir a raiz de uma determinação: “O puto, encostado às tábuas, com um pé a escorrer pela escarpa do precipício, talvez descubra a maneira de se safar.” Pela meia tarde, numa rede de júbilo e nostalgias, contei estórias dos anos de estúrdia numa outra cidade, comíamos biscoitos, mais precisamente: tu comias biscoitos e eu devorava-os (ah, as minhas fomes!) , enquanto a água para o chá aquecia na cafeteira, relatei episódios da infância a propósito de certas paixões equívocas que me prendem à geleia de marmelo, ouvi-te falar da tua rebeldia, já tão estuante de criatividade, nos dias da meninez, dias de imaginar o mundo maior e melhor do que deveras é, como se pôs minúsculo o mundo neste agora de uniformizações e subditanias, abraçámo-nos, fosse pelo que fosse imaginei uma praia, o mar odoroso, a brisa e o sal, algas, folhas de piteira, dunas, o abraço no cristal do génesis, rumor de origem e eternidade. Tenho agora diante dos olhos a lua imensa, sobe devagar no negrume que as torres de holofotes clarejam, vou conduzi-la a essa praia e pedir à noite que convoque os mastros dos navios, mastros e aves brancas, uma das paisagens a que sempre pedirei a rosa e o desatino, dou-te o poema entretanto a surgir, seu canto de alumbramento e sedução, de novo busco os teus braços e neles me renovo. Até amanhã. Agora preciso de partir.

11.3.97  a  21.1. 00.

  Eis um disco que dá gosto ouvir: Os Amores Libres, de Carlos Núñez. Já conhecia um pouco da sua música através da palavra de amigos galegos. Mais tarde, a Carla chamou-me a atenção para um momento singularmente belo da sua actuação em palco, algures, gravado pelas câmaras de um canal espanhol. Agora, este CD. Fico a pensar, enquanto de novo passa no meu leitor, naquela intervenção arrebatadora no funeral de Torrente Ballester. Tocando sobre o poema Negra Sombra, de Rosalía, Carlos Núñez transia-nos de beleza, dor e uma neve suavíssima de perdurabilidade. Devo-lhe o que então senti, inexprimível, e o que volta a proporcionar-me com este trabalho de uma nudez tão rara.
29.6.99.
     
    Serge Reggiani, na TV5, cantando Le petit garçon. Numa gala de celebração do cinema, com um garoto quase imóvel em cima do piano de Raymond Bernard. Não, não era Giorgio Cantarini, o pequeno actor de A Vida é Bela, embora compusesse uma figura que de certo modo o convocava. Era, isso sim, o interlocutor de uma fábula que não envelhece, faz parte do que aprendemos e doamos, attends, je sais des histoires, il fait un peu froid ce soir, elle n’est plus là, non, ne pleure pas. Interpretação cheia de força e sensibilidade, a emoção intacta. Mas as palavras, nas frases mais longas, já não surgem como outrora, abreviam-se, trepidam às vezes. E há, naturalmente, um pendor sobretudo recitativo onde víamos a extensão e a pletoricidade da voz. Interpõe-se a memória de um outro registo, ainda que este nos comova e suscite a admiração maior. Memória, acolhimento também, lugar do génio que continua e será, num qualquer amanhã, extinto lume? A efusividade e o enternecimento da plateia, quando se ouviram as notas finais, teriam areias assim, transidas de rios que não voltam, melancolia, sobressalto? Il pleut sur la maison, mon enfant, mon amour.
22.1.99

tremer em toda a terra do ser. buscares em mim o mais recôndito e fazer explodir o astro que tão longamente silenciara. e ali por perto o sal de um oceano que era apenas memória e melodia.
28.4.99

Réplica

O amor é como a água,
queridos concidadãos;
purifica e dissipa os gases nocivos.
É como a poesia também
e pelas mesmas razões.

O amor é um tesouro de tal modo valioso,
queridos concidadãos, 
que, no vosso lugar,
a sete chaves o guardaria – 
como o ar ou o Atlântico ou
como a poesia!

William Carlos Williams
(Tradução possível, ao calor da tempestade. Na Raidue, canta agora Paolo Conte: “E comincerà: la scimmia e la musica / che provano in due il passo invisible”.)
12.5.98

Um livreiro, um amigo

     Houve um tempo em que, para mim, o Porto era a ronda dos cinemas, o convívio dos amigos, certa inscrição do rio na página do nevoeiro ou nas crepitações da luz. E uma livraria, a Leitura, onde procurava o que dificilmente encontraria alhures, onde me detinha descobrindo a actualidade e bom critério das obras expostas, o mérito dos fundos editoriais acumulados nas prateleiras. Não falo apenas de um importante catálogo de títulos que a ditadura repelia. Nem das publicações, numa quadra posterior, mais atentas a um percurso de cidadania e intervenção. Refiro, de modo particular, a qualidade do que se nos oferecia em domínios tão diversos como a literatura e as ciências sociais, a filosofia e a história,  as artes, o direito, o cinema. Impressionavam, com efeito, a vastidão e a novidade, a organização do acervo, a capacidade e prontidão de resposta a pedidos formulados. E o rigor de um ficheiro que, pouco a pouco, se foi tornando mítico.
     Eu entrava, percorria as estantes com vagar, folheando e lendo, recolhido num silêncio de reflexão e prazer. De raro em raro, alguém perturbava esses instantes, um conhecido, um ocasional interpelante. No meio do bulício, construía um lugar de ilha, a sua música secreta, o seu voo suspenso. Ao cabo de uma hora, quase nunca menos do que uma hora, juntava os volumes escolhidos sobre o balcão e, antes de pagar, tinha em regra perguntas a fazer. Sóbrio, eficacíssimo, o livreiro respondia, eliminava dúvidas, formulava sugestões. Não permitiu que ficasse, uma só vez,  à margem do desejo por concretizar. 
     Certa altura, recordo, achando-me impossibilitado de ir a Paris, um dos meus destinos de sempre, desafiei-o a conseguir, em tempo exíguo, “La question se pose”, autobiografia de um amigo dilecto que a outro gostaria de dar numa data de aniversário. Ambos sabíamos que não seria fácil satisfazer a pretensão. Por isso, à saída, com excesso de previdência e incredulidade, impaciência talvez, perdulário jeito, fui comprar os Poemas Sinfónicos de Dvorák numa loja ali perto. Só que, ainda agora não sei como, o livro chegou. Chegou cedo, a preço ajustado à revelia de qualquer especulação ou taxa de urgência. Eu deveria saber que era assim. Não acontecera, anos atrás, haver-me conseguido um “impossível” Gramsci, em edição inglesa, num tão rápido varar de dias que envergonharia decerto os actualíssimos book-sellers da Net?
     Acresce que a delicadeza e o saber do Fernando Fernandes, é dele que falo, a par do seu aprumo cívico, cultural e político, constituíam já uma legenda. Respeitava-o, admirava-o. Sem disfemismos de linguagem, de forma discreta. Senti amiúde que contraíramos para com ele uma dívida de gratidão. Assumo-a no que me respeita, escritor obscuro, leitor militante (diria Carlos de Oliveira). Assumo-a também enquanto Presidente da APE, seguro que estou da insubstituível acção de personalidades como a daquele que homenageamos. Como não posso partilhar a circunstância em que a celebração decorre, apraz-me pedir a José da Cruz Santos que por mim abrace o grande poeta da vida a quem tanto queremos, exprimindo-lhe, com plena sobriedade e emoção, o meu obrigado.
3.11. 99

não como as aves

parte. não como as aves pelo inverno.
olha para ti num degrau da escada. cai a cinza, 
súmula de cristais
em desalinho. o telefone toca junto à porta.
rosas te buscam numa outra
areia,
rosas que ele não leva no saco por tuas mãos
trazido, gume e vala.
tão frio o mundo enquanto desce,
pedra de raízes correndo
sob escombros.
e o sol decepado, o rio a naufragar.
põe a boina, toda a música emudece. Holst,
por exemplo. ou talvez apenas o latido
dos cães, a canção da ilha no mês
de maio.
Via de costas para o vento. aprende do dia
em que a eternidade morreu,
homem sem tempo nem lugar à margem
do teu corpo.
deixa-o partir. e atende o telefone. rosas te buscam, 
brancas rosas.
1.99?

Soldados, castelos, moinhos de vento

     A infância foi, para Fernando Namora, uma travessia de questionamentos e solitudes, descobertas, fascínios, desafiando a memória do adulto com o enunciado sempre mutante das suas ocorrências e imagens. Povoada de gente e sensações, momentos com a magia do augúrio, cenários nunca rasurados ou esbatidos. Assim, por exemplo, em Autobiografia: “Às vezes persiste só um odor: resinas, urze, o chamuscar do porco na bárbara matança ritual (...) Às vezes um som: o vento nas ramarias, os sinos perdidos na charneca, os estalidos da madeira do tecto, o estrondo no castanheiro do fundo do quintal naquela noite de raios e coriscos, o pior nocturno de uma ave.” E, do mesmo modo, como em numerosas páginas da sua bibliografia, uma tribo de lutadores pertinazes, os pais desde logo, tão diferentes entre si, de insubmissos e sonhadores, de artistas e boémios, pessoas percorridas pelo rio da melancolia ou capazes de acender a estrela onde ela faltasse e anular a treva. Sabemos os nomes: Padre-Boi, Joaquim Melâneo, Pedro Olaio, Mestre Paulo, João Lóio, a Ti Florinda (“ensinou-me romanços versejados, deu-me motes para a minha inventiva assim instigada”), e tantos, tantos mais. Artur Varela. E, depois,  Manuel Filipe, Manuel Deniz Jacinto. 
     São escassas as alusões a um périplo de folguedos, aos jogos, brigas e devaneios da idade. Porque o molde singular o afastou de uma vivência em tudo idêntica à dos companheiros, vaguendo, observando o quotidiano das porfias na “vila da repousada lembrança”, decorando livros e livros de poesia? Não exactamente. A verdade é sobretudo esta: preferiu, na linha de uma conduta que o distinguia, evocar aqueles a quem ficou devendo algo do que foi, apurando-lhes o perfil, exaltando-lhes os méritos. Por outro lado, decerto projectou em várias das figuras romanescas por si criadas expressões, lances, esperanças e logros, desditas, comportamentos que poderiam ter-lhe pertencido. O garoto de Casa da Malta, por exemplo, sagaz e prestimoso diante de uma emergência em que, de súbito, se fazia ouvir o medo e a epifania? Jènito, o rapaz do tambor em Cidade Solitária, cúmplice e determinado, capaz de um gesto que se increvia na matriz de quantos resistiram à tirania? Não, decerto, os miúdos e adolescentes deserdados que percorrem os lugares ficcionais dos Retalhos da Vida de Um Médico, lugares que permanecem como sendo a eloquência do real de que partiram para exprimir a desolação e o humanismo. Mas, de alguma forma, os próprios netos, protagonistas de Estamos no Vento, rebeldes e colhendo a erva do amanhã no trânsito das interrogações ou das ousadias.
     E, no entanto, é possível rastrear representações lúdicas da meninice na obra de Namora. Nesses anos primeiros, anos em regra austeros, não eufóricos, seja nas incursões biográficas, seja na construção de entidades imaginárias, surgem amiúde quadros marcados pela instância do desejo ou da deceptividade, da fantasia, do sobressalto, por um olhar socialmente vigilante e crítico. A notação do fruído ou do interdito por razões psicológicas não se dissocia daquela que, no poema Terra, põe o filho de Cassilda a “espantar as galinhas”, a “moer o Farrusca”, a “moer o Leão” e a apetecer, já bem dentro do sono, os “brinquedos bonitos” que são da ordem do impossível no contexto familiar. Brinquedos, quem sabe?, como os que Mestre Paulo, o carpinteiro, fabricava para o pequeno Fernando, escritor em devir, “soldados, castelos, moinhos de vento”, longe dos que esplendiam nas montras da cidade imensa. Ou tão-só uma máscara de papelão, o caçar moscas na vidraça, o “ir aparar com a boca / as gotas de chuva do beiral”, a “bola de futebol no largo da escola”, num horizonte percorrido por condeixenses e também pelo velho fogueteiro, a bruxa, os desprotegidos da sorte, os palhaços que traziam da lonjura o mistério e a folia, os sinos às trindades, os viandantes? 
     O facto é que, para Fernando Namora, o universo infantil, com o que lhe é específico, recusa visões idealizadoras ou convencionais, busca a genuinidade dos contrastes, dirime-se entre a insciência e o processo cognitivo, a dor sem lastro e a cicatriz, o episódio volátil e a percepção identitária, a plenitude dos dias venturosos e a assombração. E essa evidência constitui-se como um repto à responsabilidade colectiva no sentido de proporcionar a cada criança uma maturação em liberdade, não constrangida pelo ferrete das injustiças, singularizada no engenho, na experimentação e nas mil aprendizagens da vida. Para que nunca irrompam aves perturbadas daquela pergunta, algures, num dos seus títulos de referência: “A bivó foi alguma vez menina?”
     17.4.00.


Ċ
CCAM,
13/02/2012, 09:06