Actividades‎ > ‎Publicações‎ > ‎Mealibra‎ > ‎Série 3‎ > ‎Número 5‎ > ‎

2 Sonetos Inéditos

de Fernando Pinto do Amaral (pp. 22-23)

DOCAS

Escoa-se o tempo em cristalina areia
dia a dia, por entre os nossos dedos,
arrastando pra longe alguns segredos
diluídos na sombra de uma teia

cada vez mais anónima e alheia
à noite que começa. Tarde ou cedo,
é preciso aceitar, vencer o medo,
olhar a multidão que saboreia

as horas, os minutos, os segundos
à beira deste rio, em esplanadas
onde todos parecem estar assim

desde sempre, à procura de outros mundos
neste pequeno mundo e nos seus nadas,
nesta vida pequena até ao fim.
.........................................................................................................

CONSELHO

É preciso que escrevas um poema
fiel à tua voz quando essa voz
vier como o silêncio mais atroz
da noite onde se afoga a tua pena;

e é preciso que a tua voz não tema
nenhuma assombração, dessas que a sós
pairam de vez em quando sobre nós
e rasgam nesta vida o vão cinema

dos gestos mutilados e ausentes,
farrapos de um contágio que mal sentes
a abrir no céu a porta adormecida.

E é preciso que a sombra seja lida
Como se nela a própria luz falasse
E dissolvesse noutra a tua face.
.........................................................................................................