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Número 6

PARTIDA

De súbito extinguiu-se qualquer coisa,
soltou-se qualquer peça de uma máquina incompreensível
de que dependia, afinal, a minha vida;
tornou-se tudo demasiadamente literal,
até eu estar ali, sem compreender;
e até eu não compreender era
algo inteiramente incompreensível;
o mundo, que via pela primeira vez,
via-o através de uns olhos que não me pertenciam,
que não pertenciam, porque eu próprio era
uma acontecimento incompreensível acontecendo,
algo que me acontecia, não sabia a quem;
o comboio afastava-se levando-te
para fora de mim como alguém sonhando,
e eu, e tudo o que de mim sabia, desaparecera
e ficara um sítio vazio
onde as últimas horas da tarde
como aves extenuadas pousavam.
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QUINQUAGÉSIMO ANO

São muitos dias
(e alguns nem tanto como isso)
e começa a fazer-se tarde de um modo
menos literário do que soía,
(um modo literal e inerte
que não posso dizer-te
senão literariamente).
Mas não há pressa, nem se vê ninguém a correr;
a única coisa que corre é o tempo,
do lado de fora, porque por dentro
a própria morte é uma maneira de dizer.
Caem co’a calma as palavras
que sustentaram o mundo,
mas o mundo não parece
menos terreno nem impermanece.
Restam, é certo, alguns livros,
algumas memórias, algum sentido,
mas tudo se passou noutro sítio
com outras pessoas e o que foi dito
chega aqui apenas como um vago ruído
de vozes alheias, cheias de som e de fúria:
literatura, tornou-se tudo literatura!
E a vida? (Falo de uma vida
muda de palavras e de dias, uma vida nada mais que vida;
haverá uma vida assim para viver,
uma vida sem a si mesma se saber?)
Lembras-te dos nossos sonhos? Então
precisávamos (lembras-te?) de uma grande razão.
Agora uma pequena razão chegaria:
um ponto fixo, uma medida.
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Subpáginas (2) Assobio na Noite O Laço
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CCAM,
13/02/2012, 13:35