Actividades‎ > ‎Publicações‎ > ‎Mealibra‎ > ‎Série 3‎ > ‎Número 6‎ > ‎

Assobio na Noite

de Lídia Jorge (pp. 11-17)

(Ficção) 

     A interpretação dos sonhos deveria merecer com mais frequência o crivo da ironia. Só assim se poderia compreender o Prof. Reinaldo Mateus se tivesse visitado a si mesmo, munido duma faca brilhante, afastando com ela os cortinados de seda.
     Encontrava-se deitado ao lado da sua mulher, separado do exterior apenas por esses tecidos finos, e mesmo suspenso entre a memória e o sono, sabia estar ocupando um dos ângulos mais avançados do Hotel Amplexor. Como o próprio nome sugeria, esse hotel fora construído em forma de ferradura sobre uma língua de areia, e por isso a sua estrutura projectava dia e noite um pedaço de sombra branca pela praia dentro como se uma parte da sua matéria desejasse galgar uma onda.


Também convirá saber, ainda que não seja demasiado necessário, que o hotel era o quinto de uma fila contínua de muitos outros, e que estava separado das zonas de rebentação apenas pela primitiva estrada marginal. O renque de palmeiras que o ladeavam, também elas dispostas em forma de ferradura, parecia de plantio recente e as folhas, apesar de exuberantes, nem sequer atingiam a altura das primeiras janelas. Perto dos hotéis ainda se encontravam restos de barcos velhos, vários vestígios de bens arcaicos por remover, juncos e canaviais partidos, e era entre esses destroços duma vegetação selvagem que se erguiam as cabines telefónicas em forma de caixa de vidro. Aliás, outrora, a zona deveria ter apresentado uma morfologia bastante diferente, já que a superfície da praia era contida no leito à custa de espigões de pedra, e o enfiamento de certos acidentes desaparecidos havia emprestado àquele troço da costa o nome de Dunas Machas. A alguma distância, o corpo do Casino, emerso da vegetação rasa, quando a noite chegava, iluminava-se de luzes vermelhas.
     Mas esses aspectos, que o Prof. Reinaldo Mateus mal registava, constituíam uma decoração imperfeita como outra qualquer, não tinham nada a ver com o seu sonho de Verão. O professor conhecia o lado irónico dos sonhos, o traço de fanfarronice que caracteriza esses acontecimentos furiosos do ser, o desejo extraordinário de brilho próprio neles patente, mesmo quando a cavalgada aparece disfarçada pelo terror e pela desconjunção. Ele mesmo havia defendido essa tese, ainda que de forma difusa, ao longo de oito livros decisivos sobre a interpretação da Arte. Por isso, sabia muito bem por que razão aquela faca não era uma faca qualquer. Ela continha, gravada na sua lâmina, uma inscrição perigosa – “Onde não há esperança, não há medo”. Sabia, além do mais, como esse seria um lema incómodo para alguém que desejasse viver minimamente tranquilo.
     Contudo, no seu sonho, o professor não via essa inscrição, não a lia, tinha a certeza que estava lá, por um saber anterior aos sonhos, e porque ele próprio era um homem vigilante sobre si mesmo. Ou melhor, sabia muito bem, no meio da sua noite, quer estivesse a dormir no apartamento em Flummery Square, London W1, quer se encontrasse num quarto de hotel, no sul do seu país, que o objecto gravado que manuseava era a terrível navalha de Michelangelo Merisi, o dito Caravaggio. Na verdade, desde que havia escrito sobre o pintor lombardo – fora matéria  do seu quinto livro – e concluíra que todos os outros, depois da sua passagem, se tinham limitado a ser réplicas daquele terramoto, a faca do pintor fazia parte do sonho recorrente em que ele abria cortinas e ficava olhando para uma mulher virgem, ao mesmo tempo acordada e dormindo, como uma fruta caída no meio de uma cama. E no entanto, sabia também que não poderia usar essa navalha na própria vida, porque esse lema que havia levado o seu dono ao mais formoso contraste entre a luz e a sombra, também o levara à fúria, à dissolução e à morte. O professor era um destes homens inquietos que nascem em harmonia com uma parte substancial do mundo e por nada desejam ficar apartados dela. Assim ele sonhava e não sonhava com essa lâmina, pois ao invés do que o seu lema defendia, ele desejava ter medo para poder ter esperança. Ao contrário de Michelangelo Merisi, ele queria caminhar suave pela vida, com um leve tremor de medo, conduzindo-lhe o coração.
     Então, precisamente, o seu coração bateu mais forte. A sua mulher dormia e o Prof. Reinaldo Mateus ouvia a respiração dela como o contraponto necessário do ruído criado pelas ondas do mar. Duas chamadas diferentes, duas realidades opostas, excitando-lhe a vaga do medo. Enquanto a respiração da mulher, sobre a almofada, lhe dizia – Não te movas, não te movas, as ondas invisíveis, batendo na praia antes da madrugada romper, instigavam-no para diante – Corre rápido, corre rápido, corre rápido. Duas chamadas, duas vozes distintas e contraditórias, proferidas ao mesmo tempo. Ouvindo-as, o professor, com os olhos abertos fixados no tecto baixo do quarto, pensou no passado, quando a sua mobilidade era aceitável, e concebeu um plano. Concebeu-o metodicamente, como se projectasse um livro. Então seria assim – Primeiro, desceria com a sua mulher e esquecer-se-ia de comprar os jornais. Depois tomaria o pequeno-almoço decentemente, e enquanto a sua mulher subisse ao quarto a fim de se munir dos seus objectos de mar, ele iria permanecer no hall sob o pretexto de comprar aquilo de que se tinha esquecido. Em seguida dirigir-se-ia ao balcão da portaria para poder formular três perguntas, três. A saber – Como se chamavam os hóspedes do 504, até quando tinham reserva marcada, e finalmente como se chamava ela. Só então se encaminharia para a montra dos jornais e iria ao encontro da mulher. Mas naturalmente que, nesse instante, já existiria um nome para a pessoa que o agitava daquele modo, já estaria de posse do nome dela. Por alguma coisa tinha sonhado com aquela faca.
     Sim, nada melhor do que um plano bem elaborado durante uma insónia da madrugada. – Passadas três horas após a elaboração do plano. Ali estava ele, esperando que a mulher no elevador, conduzindo-a para dentro da cabine espelhada, vendo as portas correrem, trancarem-se e fecharem-se, para em seguida se dirigir ao balcão da portaria. Atrás do balcão havia dois recepcionistas. Um deles era alto e magro, nariz fino, riso fácil. O professor já o notara dias antes, tendo pensado no seu concurso, que havia suposto discreto e delicado. O outro, pelo contrário, era baixo, atarracado, de sobrancelhas negras muito juntas, formando um só arco, e sob essa sombra pesada, uns olhos escuros, imóveis. O professor quereria ter sido atendido pelo primeiro, mas no momento em que se dirigia na sua direcção o recepcionista espigado desaparecia na porta do fundo, decifrando os dados comerciais duma folha branca. Ficou o segundo.
     O prof. Reinaldo Mateus ainda hesitou. Teve receio de entregar as três perguntas àquela pessoa intransitiva e baça, àquele jovem pequeno de olhos parados, que no entanto já vinha colocar-se na sua frente com uma mobilidade de corpo que não condizia com a paralisia da face. Mas não teve dúvida de que se encontrava nas mãos duma pessoa eficiente, quando num abrir e fechar de olhos o rapaz lhe disse o que desejava ouvir. – Que a família em questão tinha o apelido de Gonçalves, que mantinham reserva para mais dois dias, e que a senhora, aquela senhora por quem ele se interessava, se chamava Miriam. Na verdade, estava em mãos responsáveis. “Miriam...” – repetiu o professor, com o coração a bater descompassado, diante dos olhos parados do rapaz curto, mediterrânico, fechado como o seu colega dentro dum fato escuro. “Senhora Dona Miriam” – repetiu o rapaz. “Miriam...” – repetiu o professor. Então o professor, movido por uma gratidão extraordinária, e suspeitando que o rapaz o tinha compreendido, levou a mão ao bolso e, sem olhar, entregou-lhe uma nota de mil. Só depois se dirigiu à montra dos jornais. Quando a mulher desceu, o medo e a esperança, entrelaçados um no outro, tinham feito o seu labor – Ele encontrava-se em pé, sobraçando dois diários estrangeiros e dois nacionais, e ainda pôde dizer – “Demoraste”. E a sua mulher respondeu – “Foi só um instante”. Miriam, Miriam, pensou ele. – Como não lhe tinha passado pela ideia? Era isso, ela tinha sido sua aluna. E agora ali estava.
     Ali estava. E se a pessoa do professor fosse indiferente a Miriam, naturalmente que ela não fingiria indiferença quando se encontrava entre o marido e os filhos. Depois de se cruzarem, porém, ela costumava voltar-se, envolvendo-o com o olhar. Ela ficava a vê-lo, a ele, como ele olhava para ela, reconhecendo-se, formando linhas tangentes e secantes que iam convergir num ponto único, num local dourado, um espaço tocante de entendimento. Então, naquele dia, o professor não se despiria , nem iria até ao mar. Ficaria vestido, lendo os jornais, à sombra do caniço, tomando um chá fresco. A sua mulher desceria com as vizinhas da Flummery Square, que por acaso tinha vindo encontrar ali para grande alegria sua. Desceria com aquelas mulheres que contavam, com voz semelhante à da Rainha Filha, como tinham sido boas as férias passadas, dois anos atrás, numa das ilhas Fidji. Acompanhadas, de vez em quando, por aqueles dois homens que liam o Financial Times, com a altivez de Lord Nelson brandindo a espada com seu único braço. Ele, porém, não os desprezava por isso, mas por pertencerem àquela tribo vasta no mundo, que julga que Vermeer é o nome duma família de vermes ou quanto muito duns aracnídeos. Então ele ficaria ali, no meio da areia, ficaria recuado  no bar de caniço para pensar em Miriam.
     Sim, era exactamente  pelas onze horas que o marido dela costumava dar lições de natação às crianças, e os três desciam sem ela, sem Miriam. A paisagem marítima era vasta, cheia de veraneantes, o céu amplo e quente, o mar raso, tão amplo quanto o céu, e faltava Miriam. A praia não tinha Miriam. Também por essa altura as senhoras de Flummery Square entravam no mar, e a sua própria mulher tinha o bom gosto de entrar na água naturalmente. Mas uma daquelas senhoras usava uma boina de nadar amarela, protegida por uma espécie de malmequeres carnudos. De longe ele via onde se encontrava a tribo feminina da Flummery Square, através daquela espécie de bóia amarela que flutuava na cabeça duma pessoa. Através desse marco de vizinhança, ele controlava as entradas e as saídas da sua mulher. Assim, o professor naquele dia ficaria a ler os jornais, até ao momento em que a vida estivesse no ponto exacto do seu zénite – Os rapazes lá estavam a nadar com o pai, a sua mulher lá estava saltando na água com os braços levantados, e além estavam as duas cabines de telefone, em forma de caixas de vidro. Com passos leves, dirigiu-se para uma delas, cheio de esperança.
     Medo e esperança, pensou abrindo a porta de vidro, entalada entre as ervas. Muito medo e muita esperança. Com o dedo afoito, discou o número do hotel, pediu o 504. Esperou. Ouviu a música. A música do hotel terminou e a seguir disseram-lhe que não se encontrava ninguém. O professor saiu da caixa de vidro, olhou em redor, viu o mar na sua calmaria, as cabeças entre as parcas ondas, no seu lugar, os braços levantados, as bóias, tudo no seu lugar, e descendo pela areia, sem ruído, nas suas sandálias finas, percebeu que esse homem com apelido de Gonçalves continuava a nadar entre as suas crianças. Tudo estava bem, no auge do equilíbrio, no zénite. Sentiu o seu medo no zénite também, no zénite a sua nova esperança. Sobraçando os quatro jornais já desconjuntados, atravessou a marginal esburacada e dirigiu-se para o Hotel Amplexor.
     Talvez ela, que não se encontrava no quarto, estivesse no hall ou no bar. E nesse caso o que faria? – Olhá-la-ia de frente, esperaria pelo seu bater de pestanas, ou o seu movimento de lábios, o seu sinal de assentimento, e depois, depois, falaria com ela. Falaria com Miriam. Uma antiga aluna que a vida tinha trazido ao seu encontro, num hotel em forma de ferradura. Com o coração a bater descompassado, o professor ultrapassou a porta giratória e entrou. Mas o grande hall estava deserto e o rapaz curto, de olhar inexpressivo, caminhando rápido, como se a parte de baixo não condissesse com a de cima, veio na sua direcção. Muito rápido, ao contrário do movimento dos olhos que não era nenhum, ou pelo menos, se era algum, o professor não o distinguia. Veio e disse – “A Senhora Dona Miriam desceu à praia agora mesmo”. Disse-lhe baixo, com uma voz sem inflexão, como a sua cara. Então o professor percebeu que aquele rapaz inexpressivo tinha entrado definitivamente na sua vida. “Muito obrigado...”- respondeu. E levando a mão ao bolso da carteira, entregou-lhe uma nota de mil. Tinha de voltar à praia.
     Mas os pensamentos dum homem, mesmo com a elevação do Prof. Reinaldo Mateus, não caminham sempre à mesma altura, como ele mesmo quereria, porque o pensamento não é apenas um corpo de asas, tem suas garras enfiadas na terra. Por isso o professor parou para se questionar – “Terei dado mil escudos  ao rapaz da recepção?” Já ia a caminho do bar de caniço donde ficaria a ver Miriam, entre o marido e os filhos, e ainda pensou – “Espera, enganei-me. Dei cinco mil escudos ao rapaz...” – disse para si, apalpando-se, parado, a caminho do bar de caniço. – Convém acrescentar que, por essa altura, com mil escudos ainda se comprava uma boa garrafa de whisky. Por conseguinte, por seis mil escudos – era quanto naquele dia já dera ao rapaz inexpressivo – poder-se-ia comprar seis boas garrafas de whisky. Mas como o professor não bebia, fez umas contas diferentes. Com aquele dinheiro, era possível adquirir um dos seus oito livros, todos com uma excelente bibliografia e profusamente ilustrados. E o professor recomeçou a caminhar. – “Miriam?”
     Não, pensando bem, não se importava – Tinha reconhecido na pessoa dela uma antiga aluna, a Miriam, e a partir de agora saberia em que lugar preciso poderia encontrá-la, graças a ele, ao rapaz inexpressivo. O que eram quatro mil escudos de prejuízo? E então, começou a enxergar e viu, ao longe, o que lhe pareceu ser a silhueta de Miriam, entre o marido e os filhos. Marido e Mulher, ao fundo, de costas para o refúgio de caniço, ambos de rosto para a ondulação rasa do mar. Os filhos rapazes entrando e saindo, saltando. Ele não ouvia  os seus gritos de alegria, mas imaginava-os, colava-lhes as vozes dos outros rapazes que passavam rente à sua cadeira de praia, gritando. E ela. Ela. O coração do professor, tremendo, sob a camisa de linho, que não despia, à espera, não sabia de quê. À espera dos olhos dela. Sim, os olhos dela ali vinham. Entre o marido e os filhos, caminhando, pela senda de tábuas que unia a orla molhada à areia seca, passava junto ao bar de caniço e findava na estrada marginal primitiva. Ela ficou atrás do marido e das crianças, eles passaram, ela olhou para o professor. Ele viu. Atrás deles, ela acenou com o olhar, rindo, ou melhor, sorrindo, pensou o professor. Ele curvou a cabeça, voltando-se, vendo-os afastarem-se, até que os quatro se misturaram com os outros hóspedes que àquela hora entravam pela porta giratória do Hotel Amplexor. – Sentado na cadeira, entre as ervas e o mar, o professor sentiu a maior esperança e o maior medo do mundo.
     O maior medo do mundo, pensou, de tarde, ao encaminhar-se  para a recepção, na hora do grande calor. Porque os seus pés voavam, o seu coração arrebatava-o para fora daquela teia de vidros altos e paredes brancas onde os dois estavam prisioneiros, agora que tinha a certeza de que ele e ela, aluna e professor, entendendo-se através do mutismo, do olhar e da precaução, estavam perto um do outro, no meio de todos os outros. Muito, muito medo. A mulher disse-lhe – “Porque não dormes a sesta? Fazia-te tão bem. Devias dormir em vez de estudares os jornais, para nada...” Ele respondeu-lhe – “Vou descer para comprar uma revista”. “outra revista?” – perguntou a mulher. “Se esperares por mim, eu vou também...”
     Mas não, a sua mulher não se levantou. Estava cansada do mar, da batida da água, do almoço, da luz intensa da praia. Não iria vê-lo comprar a revista, apenas recomendou – “Toma cuidado, não te enganes, não tomes a direita, segue pela esquerda até ao elevador, senão perdes-te e vais ter ao outro lado deste labirinto...?
     “Sim, eu sei” – disse o professor.
     E saiu para o corredor como quem sai para uma planície, caminhando rápido pela alcatifa fora, sem olhar para trás, para descer e obter notícias dela. De Miriam. – Lá estava ele, a fonte da sua informação, o rapaz apertado no fato escuro. Mas o que poderia perguntar? Completamente entregue ao acaso, sem plano nenhum, o professor ficou diante do rapaz inexpressivo, à espera. O rapaz, com a cabeça em baixo, com as mãos móveis, o corpo móvel, mas os olhos parados como uma esfinge, ali estava a olhá-lo. O coração do professor encontrava-se perplexo de si mesmo, da sua própria figura. Sabia, contudo, que se ele não lhe dissesse nada seria porque nada tinha para lhe dizer. E então o rapaz atarracado confirmou a sua suspeita – “Por enquanto não há nada”. Não há nada, concluiu o professor. Mas não fazia mal. Ao ouvi-lo, não estava só com a sua inesperada paixão, porque a voz do rapaz unia-o a ela. Sem saber muito bem o que fazer, comprou a revista, e antes de subir, acercou-se do balcão e gratificou-o de novo. Ficar a saber que não se sabia de nada sobre Miriam, valia muitas vezes mais do que a nota de mil escudos que de novo lhe colocava no côncavo da mão. Significava que entre ele e Miriam havia um aliado seguro.


     Ali estava, pois, tinha um aliado vigilante e seguro. Talvez aquele aliado fosse capaz de lhe dizer a hora exacta em que ela se encontrava no hall. Talvez a hora em que saísse só, talvez o momento em que reentrasse no quarto. E a sua imaginação voava, entre o hall branco, a areia fina e a penumbra do quarto. Do quarto voava para o grande mar, um cruzeiro no mar, um enorme navio, mas onde os camarotes seriam pequenos e íntimos. Aí, talvez ela referisse detalhes do passado. O professor fazia um esforço para se lembrar do passado, como e quando ela tinha sido sua aluna, em que circunstâncias, em que anfiteatro, imaginava as letras das provas, atribuía-lhe uma caligrafia, um rosto mais jovem, e como tudo era uma nebulosa, ele erguia a nebulosa como território de eleição rasgado pela figura tangível do presente. Se a encontrasse cara a cara – por vezes seria no quarto escuro, durante um minuto só que fosse, cheio de medo e esperança – ele dir-lhe-ia que assim, com os seus dois meninos rapazes, ela lhe lembrava “A virgem, o Menino e Santa Ana”. Imaginava que lhe dizia. E para que ela se lembrasse dessa imagem, mais que não fosse das antigas aulas, haveria de acrescentar, em jeito de fantasia, que ele mesmo gostaria de afastar com a ponta da sua própria sandália a cabeça daquela víbora, a imagem do mal, para só existir, em torno dela e dos seus meninos, a imagem do bem. Por certo ela se lembraria das suas lições, do amor que ele nutria por aquele quadro, também conhecido por “Madona dos Palafreneiros”, e a devoção que dedicava ao seu autor, Caravaggio. Haveria de lhe dizer, antes que lhe estendesse os braços. Haveria, sim, uma vez que tinha aquele aliado, lá em baixo, no rés-do-chão, observando, vigiando por ele. E os seus pensamentos eram longos, demorados, porque demasiado altos, e por conseguinte as suas palavras não podiam deixar de ser breves. Assim, quando desceu para jantar, ao atravessar o hall, apenas disse a sua mulher – “Vou ali”.
     Ela aconselhou-o – “Então vai devagar”.
     Caminhando rápido, o professor dirigiu-se ao balcão, e o rapaz inexpressivo ainda lhe pôde dizer – “Saíram. Devem voltar tarde”. Mas nesse instante, a mulher já se encontrava junto dele. O professor ficou sem palavras, perdido de fúria e desespero, e ali mesmo perdeu a paciência, durante um segundo, sem medo e sem esperança, como o lema gravado na faca, por sentir que naquela noite não iria ver Miriam, e saber que o tempo escoava, e que nem uma palavra poderia trocar com ela, sem que fosse vigiado, e por isso, disse em voz alta, muito mais alta do que seria permitido a um professor que já publicou oito livros de referência, que só lhe apetecia subir ao quarto, arrumar a sua bagagem e partir. Disse, voltando as costas, em frente do rapaz inexpressivo, que os olhava como se fossem duas moscas zumbindo, no meio do hall branco. “Eu nem deveria querer jantar, nem deveria...” – disse o professor, encaminhando-se para o restaurante onde já lá se encontravam as duas senhoras de Flummery Square, muito inglesas, a que se juntavam os maridos tão ingleses quanto elas. “Pois muito bem” – disse ele. “Mal jante, tu ficas e eu vou-me deitar”.
     E a sua mulher começou a falar em voz baixa, com as senhoras de Flummery Square. Entre aquelas falas, meio polidas meio displicentes, finas gargalhadas próprias de um jantar de Verão, uma delas dizia que se o professor não conseguia dormir, que pedisse na copa um bom chá de salsa. Parsley – Ouvia ele distintamente. A outra aconselhava – “Se não consegue sossegar, faça-lhe um chá de alface..” – Lettuce – Escutava o Professor, incapaz de entabular conversa. “Vou-me deitar” – disse ele. E a mulher ia levantar-se também, mas uma das senhoras de Flummery Square, a que usava a touca de malmequeres carnudos quando ia para a água, prendeu-lhe o braço e bastante divertida falou-lhe ao ouvido. As três uniram-se para rirem desabridamente. As três a rirem. As três. Fosse como fosse, um bom Deus devia guiar a mão e o espírito da senhora da touca, pensaria o professor um minuto depois das gargalhadas. – Pois ao aproximar-se do elevador, havia um grupo de hóspedes à espera para subir. O elevador demorava a descer. Desceu, abriu-se e do fundo espelhado saíram Miriam, o marido com apelido de Gonçalves e os dois filhos pequenos. E ela escolheu a pessoa do professor entre todos os do grupo que esperavam e sorriu. Ela era a primeira entre os quatro que saíram, e nem por um segundo alterou a direcção da cabeça, mas os olhos fecharam-se um pouco, os lábios abriram-se, como pela manhã sobre a passadeira de tábuas, e ele teve a certeza de que ela, nesse abrir e fechar de lábios, tinha pronunciado três palavras – “Boa-noite, professor”. Iam Jantar. – O professor gostaria de voltar a trás, mas não podia. O professor não tomou o elevador. Não se moveu. Ficou ali. O seu vigilante tinha-o enganado. Ou então eles haviam mudado de planos. Acaso poderia o seu vigilante adivinhar tudo, incluindo a mudança de planos que ocorre subitamente no seio dum casal? Não seria pedir demasiado a um recepcionista vigilante? Fosse como fosse, tinha valido a pena.
     Então a manhã seguinte seria a última, o banho de mar seria o último, a hipótese de a ver ao longe seria a derradeira, derradeira a última noite. Se durante aquele dia não se encontrasse com Miriam, só a teria visto, nada saberia dela, nem o local onde vivia, nem a que trabalho se dedicava, nem sequer ficaria com o telefone para lhe ouvir a voz de vez em quando. Ter-se-iam cruzado por engano, para nada. A noite anterior teria sido a última vez que a teria visto. A última. O seu maior receio seria de que o rapaz inexpressivo não estivesse, lhe faltasse. Ele era a última ponte, a boca inexpressiva por onde saía a voz do seu próprio assobio. E esperou, andou vagueando entre o hall e a areia, as ervas e as caixas de vidro, por vezes com a mulher por perto, a perguntar o que tens, sentes-te mal, sentes-te bem, porque não dormes, não te sentas, não sossegas, queres alguma coisa, alguma tisana, algum comprimido, algum chá, atrás dele, sempre rente a ele, até que de novo chegou a hora de jantar, sem voltar a ver Miriam. Atrás do balcão, o recepcionista atarracado olhava para baixo, ocultava o olhar inexpressivo sob as pálpebras, concentrado no labor das suas mãos escondidas. Era como se dissesse – Não posso fazer nada. Não tenho nada para lhe dizer. Ou então, vão sair, já saíram, não a verá mais. Alguma coisa que significasse uma perda para sempre, ele queria dizer-lhe. E quando subiram ao quarto, depois do jantar, a mulher disse-lhe – “Estive a pensar e acho que deveríamos ir embora. Penso que te sentes mal...” E assim era.
     O Prof. Reinaldo Mateus não sabia se valia a pena ter experimentado medo e esperança. O que sentia agora era alguma coisa semelhante a desgraça e desalento. “Deveríamos...” – disse ela. E metodicamente, a sua mulher começou a despir-se. A mulher demorava no quarto de banho, limpava-se, escovava-se, massajava-se, preparava-se para a sua noite, esse espaço reparador do resto da sua beleza. E ele esperava, não sabia porque esperava, mas esperava. Ainda vestido, com um jornal português aberto à largura do seu corpo, lia letras sentado entre os cortinados abertos, diante do mar, onde as luzes do hotel iam bater, perdendo-se. O escuro da noite em frente. O escuro para onde ele quereria atirar um assobio-quadrado, próprio do salteador e do amante. Porque haveria de se entregar à noite? Deixar esmorecer assim o seu desafio? Esperou. Fez bem esperar – O telefone tocou devagar, a campainha no registo mínimo, o som duma borboleta eléctrica zumbindo, ele atendeu. Da recepção a voz inexpressiva disse “A senhora está lá fora, na rua, à sua espera”. Pousou o auscultador. Quando o pousou, o coração do professor uniu-se no meio do peito, e em seguida alargou-se até aos confins da noite. Respirou fundo, como antigamente. Era isso, então ia descer. Percebendo que ele se preparava para sair, a mulher apareceu no meio do quarto, e ele julgou que ela ia dizer – Eu vou também. E nesse caso, ele teria de lhe responder – Como queiras. E sairia. Mas a sua mulher disse-lhe – “Estás a falar sozinho, como antigamente”. O professor não podia parar e começou a dirigir-se para a porta. Ela ainda lhe disse – “Escuta bem. Tenho aprendido demais com as senhoras da Flummery Square. Chegou a minha vez. Se vais sair sem mim, e te perderes, não serei eu quem te irá buscar...?
     E ainda – “Não, não serei eu.”
     “Também não te estou a pedir nada” – disse ele, sem a ouvir, pensando em Miriam, no atraso que aquela troca de palavras poderia significar em relação a Miriam. E encaminhou-se definitivamente para a porta.
     A sua mulher ficava em camisa de noite, com o cabelo enrolado, de costas para a porta que ele abria e logo fechava. O que sabia ela da sua vida? Continuaria a adivinhar o seu pensamento como antes? – Não queria pensar, não era a hora de pensar. Rapidamente, o elevador colocou-o no hall. O rapaz inexpressivo atendia novos hóspedes ao balcão. Ele aproximou-se, com o coração a bater descompassado, sem medir qualquer distância nem consequência. Ultrapassou aquelas pessoas que chegavam. O rapaz disse-lhe – “Está na rua, tem um vestido branco.”.
     “Tem um vestido branco, está na rua” – repetiu o professor, limpando o suor da testa, deixando-se levar pela porta giratória e saindo para a rua. “Está na rua...” – disse para si. “Tem um vestido branco” – Era fácil de ver um vestido branco. Na rua, havia o grande escuro da rua, a vegetação selvagem, as caixas de vidro ao lado do hotel, a velha estrada por onde caminhava um vestido branco. “Miriam!” – disse ele. Ali estava ela. Era preciso andar rápido atrás de Miriam, alcançá-la. Só Deus saberia pelo que teria passado Miriam para se encontrar sozinha a caminhar, àquela hora, por uma estrada. Um milagre. Tinha imaginado um encontro de vários modos, e em vários sítios, mas não aquele. Ultrapassava-o a forma como o encontro estava a acontecer, e encaminhando-se para ela, andando atrás dela, sem parar. Aliás, Miriam caminhava à sua frente, sem pressa, ele é que andava devagar. Por certo esperava-o. Esperava-o caminhando adiante, sem se voltar, como deve caminhar a mulher. Até que ele chamou – “Miriam, espere por mim!” Miriam, porém, não o deveria ter ouvido. Talvez o professor falasse baixo de mais, ou nem mesmo falasse e julgasse que sim, à medida que colocava os pés no chão de asfalto e areia, demasiado devagar para o vagar de Miriam. Um táxi parou junto de Miriam, Miriam entrou. O professor tentou correr atrás do carro que levava Miriam, mas apesar da baixa velocidade a que seguia cada vez o carro se afastava mais. O coração batia nas suas fontes. “Miriam?” – Nesse momento, o professor virou-se na direcção do hotel, e viu vir, avançando pela estrada adiante um novo táxi iluminado. De súbito, o hotel fixo, em forma de ferradura, onde ficavam a mulher dele e o marido dela, pareceu-lhe um imóvel ameaçador. Era preciso tomar aquele táxi e seguir Miriam que se dirigia para algum recinto especial onde Miriam premeditara encontrar-se com ele. Pensava o professor, com o rosto colocado entre os bancos, dirigindo com a força do olhar os movimentos do táxi, atrás do outro táxi. “Para onde se dirigirá aquele táxi?” – perguntou o professor, seguindo o percurso proposto por Miriam.
     “Para onde?” – disse o taxista, parecendo hesitar na resposta e conduzindo tão lentamente quanto o táxi que perseguia. Mas em seguida acrescentou que deveria dirigir-se ao Casino, embora os taxistas àquela hora costumassem fazer uma volta até ao fim das Dunas Machas. Depois, sim, depois é que regressavam pela outra estrada, fazendo um enorme percurso, até ficarem diante do Casino. Ele não, ele como taxista nunca faria uma coisa dessas, mas se o serviço consistia em perseguir o outro táxi, ele seguiria atrás, fazendo idêntico caminho. E aí, o professor, por um momento pensou na faca de Caravaggio, mas só por um instante, por um segundo, talvez, pois o que o empurrava, naquele momento em que havia deixado a mulher dentro dum quarto de hotel, e em que seguia atrás de Miriam, sozinha, sem marido nem filhos, dentro dum carro alugado, era sem dúvida o seu oposto – Muito medo e muita esperança,
     Uma extraordinária esperança, quando o táxi começou a passar junto de candeeiros que olhavam a rua com a sua luz mortiça, outros que nem olhavam porque se encontravam desconjuntados e partidos, rente às acácias selvagens, ao longo de umas ruas que se urbanizavam, entre guindastes e materiais de construção espalhados, seguindo Miriam. Sempre na peugada do táxi da frente, passavam por cima de tábuas, sacos, montículos de areia e cimento, ferraduras, mangueiras, detritos, covas e saliências da velha estrada, atrás do táxi onde se vislumbrava, quando a luz incidia, o cabelo dela, de Miriam, e todo esse balanço levava o professor para uma zona sonhada, no auge absoluto do medo e da esperança, ao longo das Dunas Machas. O motorista ainda lhe disse – “O senhor não acha melhor ultrapassarmos o meu colega, para ver se persegue a pessoa certa? Mas as palavras do motorista pareciam saídas duma boca adúltera. Naturalmente que ele não perseguia ninguém, apenas se deixava conduzir por Miriam, que o levaria até um sítio justo para terem um encontro, uma conversa pura, criarem os dois um plano limpo. Quem saberia? Tinham chegado ao local onde o asfalto se perdia sob as ervas. Aí o táxi da frente fez um salto, baixou numa cova de terra, torceu, ziguezagueou e virou para trás, levando no seu interior Miriam. O taxista disse para o professor – “É sempre assim, fazem esta pirueta para justificarem o regresso à estrada e empocharem mais dois ou três mil...”
     “Vamos atrás!” – disse o Prof. Reinaldo Mateus. “Vamos correndo até onde eles pararem. Onde o seu colega parar, paramos também”. E de novo correram em sentido contrário, por uma estrada que atravessava as Dunas Machas, atrás do outro táxi, saltitando, balouçando, fazendo voltas e voltas, aproximando-se perigosamente, por vezes, o carro de trás do carro da frente, com Miriam lá dentro, olhando adiante, sem dúvida à espera de encontrar o local exacto, até que o motorista disse muito alto – Eu não disse? Já cá estamos! Há outros que ainda dão voltas maiores até cá chegarem...”
     O coração do professor batia certo, seguro, ritmado pelo motor do carro em abrandamento. Em frente, as luzes eram intensas. Ele pagou a corrida, o táxi da frente abriu a porta e Miriam saiu. O professor ainda disse – “Miriam? Estou aqui”. A rapariga virou-se e não era Miriam.
     A rapariga que ele havia tomado por Miriam ainda o olhou, ainda fez um gesto de reconhecimento, mas logo se recompôs, sacudiu o vestido, apanhou um pouco a saia, e correu para o interior das luzes que assinalavam o domínio do Casino. Desapareceu nas luzes vermelhas. O motorista parecia já ter vivido situações semelhantes, para ele tudo parecia natural e previsível, e disse, com o carro a trabalhar, o braço fora do carro e a mão a acenar para dentro como um gancho – “Posso levá-lo de volta”. Sim, podia, pois aquela pessoa não era Miriam. O rapaz da portaria tinha-o enganado. Ou ele ter-se-ia enganado por si mesmo, ou a faca de Caravaggio havia-o seduzido ao contrário, levando-o para fora do seu sonho de Verão. Sim, queria voltar. Mas não queria voltar com aquele homem de táxi. Queria outro táxi. Aliás, transpirava demais. E sem responder ao motorista, aproximou-se do Casino.
     Não entrou, não saberia entrar num Casino, mas ficou ali, sentado numa vasta sala vestibular, disperso, ouvindo um rumor estranho, uma alegria que lhe parecia conter segredos que não lhe diziam respeito, vindos de uma outra esfera, sentado no meio dum espaço adverso, para onde um engano o tinha trazido. Ficou ali, foi ficando por mais algum tempo, sem se importar com o tempo, e só quando o ruído se lhe afigurou insuportável e as pessoas de bem vestidas e bem automobilizadas lhe pareceram malfeitoras e assassinas, ele saiu para a rua e tomou um novo táxi. E ele pediu ao novo motorista que o levasse ao Hotel Amplexor, e o motorista em vez de tomar a direcção exacta, conduziu-o de regresso por um circuito que cada vez mais o afastava, balouçando-o no carro, através da estrada esburacada, dos detritos e das pranchas, desenhando uma enorme volta, num percurso transversal ao mar. Para o professor não tinha importância. Quando entrasse pela porta giratória, preferia que fosse tão tarde que já nem lá estivesse o rapaz atarracado, para não ter a tentação de perturbar a sua inexpressividade. “Então chegámos...” – disse o taxista, com o à vontade de quem engana por código firmado.
     “Chegámos” – disse o professor, sem se importar. Agora não lhe apetecia abandonar o táxi. A seu pedido, tinham parado uns metros antes do renque das palmeiras, e ele olhava para o volume transparente da cabine telefónica em forma de caixa de vidro, donde dois dias entes havia ligado para o quarto dela, e via-a agora, a caixa, como uma coisa perdida no meio das ervas escuras. Aliás, o mar, os espigões de pedra, o bar de caniço, a passadeira de tábuas, a areia, as folhas verdes, tudo era escuro, sem uma estrela. Brilhavam por um brilho que lhes era próprio, não estavam ligadas a nada, como nos quadros dele. Nenhuma luz descia de fontes vastas, cada coisa irradiava por si, e onde se via beleza poder-se-ia dizer agonia, exactamente como nos quadros dele. A caixa de vidro brilhava e ao mesmo tempo morria. “Chegámos” – disse o taxista. “Pois chegámos” – disse o professor, disposto a atravessar a porta-giratória sem desviar o olhar dos seus próprios pés. Queria passar naquele hall, imponderável, invisível, transparente como o ar. Mas isso não era possível – o rapaz inexpressivo estava atrás daquela alta trave de madeira donde o havia iludido e chamou-o Porque o chamava? Iria, não iria? Quem o tinha enganado? Sim, não poderia deixar de ir. Já ali estava diante do contador, mas a sua decepção era tão grande que não conseguia dizer uma palavra. Aliás, o rapaz atarracado também não tinha quaisquer palavras para dizer. De mãos móveis e sobrancelhas unidas, virou-se, aproximou-se do cacifo do professor onde havia um papel dobrado e entregou-lho. O professor tirou os óculos e leu a mensagem extraordinária – “Professor, esperei duas horas e meia por si. O mesmo aconteceu há dez anos atrás, no pequeno café da Flummery Square. Miriam Gonçalves – Adeus, professor”. O professor leu esse papel durante muito tempo.
     “Um tempo extraordinário, rente ao balcão”.
     “Ouça” – perguntou por fim. “A que horas saem?”
     O rapaz respondeu – Acordam às cinco, partem às seis”. O professor estava com dificuldade em ver as horas. O rapaz disse-lhe – “São três e meia”. O professor começou a mexer nos bolsos, encontrou duas notas de cinco mil escudos e colocou-as na mão curta do rapaz. “Diga-me – vão apagar as luzes do hall?” – E continuava a remover os bolsos. “Não senhor, as luzes ficam abertas durante toda a noite”. O professor encontrou mais duas notas de cinco mil escudos e entregou-as ao rapaz – “E tem a certeza  de que para saírem terão de passar por esta porta?” Sim, não havia outra porta de saída, disse-lhe o rapaz. O professor continuava a procurar mais dinheiro entre os papéis da carteira que espalhava desordenadamente sobre o balcão mas não encontrava. Queria gratificar mais e mais aquele rapaz. Por fim juntou os papéis espalhados, a que acrescentou a mensagem de Miriam, e disse-lhe – “Não apague nenhuma luz. É ali mesmo que eu quero esperar”. E limpando o suor da cara, procurou o sofá que melhor olhava para o elevador principal. Pois era ali que iria sentar-se. Para ver Miriam. Para que ela também o visse. Para que ela soubesse que um homem de fato amarrotado e olhos vermelhos tinha passado a noite inteira à espera dela. Para ele recolher para sempre a imagem dela em roupas de partir e malas de viagem. Entre o marido e os filhos. Amor por amor. Sem esperança e sem medo, como na inscrição da verdadeira faca. E o professor fechou os olhos, no hall branco, e assobiou na noite, devagar. Diante, controlando o tempo, de pálpebras descidas, encontrava-se o seu vigia.