(Ficção)
Sou um homem pacato. Em dez anos de casamento, a Adriana nunca se queixou. Às vezes diz que eu falo pouco, que não me abro, que não partilho as coisas com ela. Mas é o meu feitio. Gostaria de lhe dizer, por exemplo, que me sinto poeta. Não que saiba escrever, não é isso, mas poeta por dentro, cheio de metáforas, de imagens bonitas, de palavras musicais. Ela havia de se rir de mim e eu não suporto que se riam de mim. Como da última vez que tive de usar smoking e a Adriana riu até às lágrimas porque eu tinha o laço torto. Irremediavelmente torto. Acho que o defeito é do meu pescoço. Visto smoking duas vezes por ano, no máximo, e o laço fica sempre torto.
Hoje vamos a uma festa. Aniversário de casamento de um casal amigo. Se a Adriana sai do banho e começa a rir da tortuosa posição do meu laço, garanto que a mato. Há poucas coisas no mundo que me enervam, mas rirem-se de mim e do meu laço com vida própria é mais do que consigo aguentar.
A Adriana sai do banho, linda, húmida, enrolada num toalhão cor de fogo. Parece uma rainha pagã, com os cabelos soltos, ondulados nas pontas. Protegeu-os da água e estão secos mas parecem selvagens assim recém libertos da touca. Os braços nus seguram a toalha e as pernas aparecem na sua total desinibição. Percebo que vou ter que despir o smoking e atirar para o chão o vestido, a bolsinha de missangas, os sapatos de cetim que a esperam sobre a cama. Desmanchar de novo o laço, paciência, de qualquer modo está inelutavelmente torcido.
Tens o laço torto, diz a Adriana e desata a rir.
Aproximo-me dela e a Adriana pensa que lhe vou oferecer o pescoço para que me ajeite o laço, mas é ela que me oferece o pescoço nu para que o esgane.

Seguro-lhe as mãos atrás das costas, das costas dela, quero dizer e tenho à minha mercê a jugular azul, talvez lilás, se eu fosse vampiro que prazer cravar-lhe os dentes, vê-la tornar-se exangue nos meus braços, ter a certeza de que nunca mais iria rir de mim.
Aperto-a tanto que os olhos se tornam inquietos, diz, agora não, o seu perfume envolve-me de forma hipnótica, apetece-me mergulhar nele, navegar a todo o pano nesse mar de aromas, amá-la enquanto a mato devagarinho.
Quero matá-la com as minhas mãos nuas, não usarei a faca, nem a arma de fogo, nem o veneno, nem as minhas lâminas, ali mesmo à mão na casa de banho. Posso escolher entre apertar-lhe a garganta com todas as minhas forças ou atabafá-la até à morte com as almofadas de penas, e deixá-la estendida na cama ao lado do vestido por estrear, com os olhos azuis escancarados de espanto.
Tinha dez anos quando o meu avô me mostrou as flores do linho. Sobe para a carroça, disse ele, se queres ver a cor dos olhos da mulher com quem hás-de casar. Eu subi, encantado com aquelas férias no norte onde aprendi mais numa semana do que num ano inteiro em Lisboa. Eram as primeiras horas da manhã e aquele ar tão limpo, cheio de cantos de pássaros, de odores diferentes, múltiplos, agrestes, despertava os meus sentidos, ensinava-me a terra. O avô levou-me por um caminho sem fim, ao ritmo do passo vagaroso do velho cavalo de chapéu de palha. Quando chegámos ao campo de linho ele deixou-se ficar com as rédeas na mão, a olhar em silêncio. Depois desdobrou um guardanapo de quadrados vermelhos e fez aparecer dois grandes pães, um com presunto para ele, um com queijo para mim. Dois copos grossos e curtos, uma garrafa de verde branco. Eu nunca tinha bebido vinho e disse que não queria, mas o avô garantiu que se eu ia conhecer a cor dos olhos da minha futura mulher tinha que beber como um homem e deixar que aquela gotinha de álcool ajudasse a imaginação. Assim fiz. O pão ainda estava quente, o vinha ainda estava fresco. Fiquei um pouco tonto e muito alegre e o meu avô desceu da carroça, segurou na minha mão, levou-me pelo campo e apontou, num gesto circular
olha
e eu olhei e vi multiplicados por mil os olhos da Adriana e a profecia ficou comigo tão viva que quando a conheci tive a certeza de que me estava destinada desde que os homens cultivaram o linho.
Agora estou a beijá-la enquanto lhe seguro as duas mãos atrás das costas com a minha mão direita, e com a esquerda lhe tapo o nariz. Debate-se. Sinto-lhe os seios que se esmagam contra a minha camisa de cerimónia, ainda não tenho o casaco vestido. Sou obrigado a deixá-la respirar porque a boca desce agora pelo decote para beijar-lhe o corpo, aquele corpo que é a minha perdição, embora nunca lho diga da forma apaixonada como o sinto. A toalha há muito que escorregou para o chão. A pele ainda está húmida, morna, deliciosa e eu penso confusamente que quando terminar de matá-la ficará fria como uma estátua de mármore.
Quando na nossa lua-de-mel entrámos no Louvre de mãos dadas, a Adriana conseguiu iludir a vigilância do guarda, atrapalhado com uma escola barulhenta, para apalpar o corpo da Vénus de Milo. Achei que estava quente, disse ela, de tal forma aquela carne palpitava de vida. Falámos nisso durante dias, da impressão que lhe fez aquela pedra que parecia viva, interrogámo-nos se a arte seria isso, criar vida a partir de matéria informe, sons caóticos, palavras sem sentido, telas vazias. Iniciávamos apenas a nossa vida adulta, recém-formados, recém-casados, procurando respostas em tudo, incluindo a descoberta alucinada dos corpos. O teu corpo, Adriana. Mesmo quando o nosso casamento encarrilou numa certa rotina, não deixei nunca de interrogar-me sobre esse mistério que faz com que me roje mentalmente a teus pés, de corpo e alma.
E agora estou aqui a matar-te. Não devias ter rido do meu laço torto. Não devias. Ainda por cima não sei como se faz. Não tenho experiência. Dizemos eu mato-te mas não sabemos como separar do seu encanto esse conjunto milagrosamente harmonioso de ossos, músculo, pele, cabelos, e o que dizer dos olhos, da boca, dos dentes, do sorriso, das unhas, do cheiro, da saliva, da batida exaltante do coração. O teu coração, Adriana, que se esconde sob este maravilhoso seio esquerdo, o que tem o sinalzinho cor-de-rosa junto do mamilo. O teu coração, meu amor.
Parece que o mais fácil é apertar o pescoço. Coloco a polpa dos polegares naquela covinha da garganta, tão bonita, entre duas clavículas perfeitas, que te sustentam esses ombros de estátua.
Quantas vezes nas nossas peregrinações pelos museus te comparei às esculturas admiráveis dos maiores artistas, Rodin, Bellini, Canova, mas nenhuma delas tinha a maciez dos teus contornos, a penugem dourada, apenas visível em contra-luz, as minúsculas imperfeições da pele que te tornam única, sim, estas levíssimas sardas que a última praia te deixou no nariz e na pele do decote e a que as pontas cor-de-cobre dos teus cabelos propõem a rima certa e me transportam para outro lugar.
Estamos à beira-mar e não há como a espuma para enquadrar as tuas pernas perfeitas, fortes sem serem grossas, altas sem serem magras, ágeis sem serem musculosas. Os teus pés descalços trazem a nudez primordial que torna a praia da manhã num lugar virgem, como se a areia, alisada pelo vento da noite e a última maré cheia, fosse pisada pela primeira vez. Embriagados de sal e de sol fazemos amor entre as rochas com pequenas ondas mansas a lamber-nos o corpo num vai-vem festivo. E tu ris, com os rins na água e as pernas de deusa enroladas na minha cintura.
Ai, Adriana, como a vida tem força. Se não fechar os olhos não poderei matar-te. Irei pelo contrário possuir-te, com fúria, com raiva, com paixão, mais uma vez sujeito ao império da tua força, da tua exuberância, da tua troça
tens o laço torto
não suporto que troces de mim, eu nunca te disse mas amo-te para além do razoável, por isso não podes rir-te depois de eu me ter esforçado tanto para te agradar, às cegas aperto-te a garganta, aperto, aperto, até não ver mais nada, não entender mais nada, até caíres sobre a toalha vermelha que te rodeia o corpo nu como uma gigantesca flor de sangue.
Inclinado sobre a cómoda, tento compor o laço. A porta da casa de banho abre-se, talvez com o vento, tens o hábito de tomar duche com a janela aberta para não embaciar os espelhos.
Surges enrolada na toalha cor-de-fogo, orvalhada, despenteada, belíssima e dizes, num sorriso sedutor, bravo, o teu laço está impecável.
Um pouco à bruta arranco-te a toalha, deito-te ao lado do vestido novo, empurro para o chão os sapatos de cetim. Fazemos um amor fora de horas, excitante, inesperado
agora não
agora sim, e o meu laço fica irremediavelmente torcido e tu, Adriana, nunca saberás os perigos de viver há dez anos com um poeta em construção.
