Numa grande cidade do norte de Portugal, vivia uma menina chamada Joana, que era bonita e alegre como quase todas as crianças e gostava de brincar, de ir à escola e de dormir, como qualquer uma delas. Só que, quando o João Pestana passava com o carrinho de mão e lhe atirava suavemente alguns grãos de areia nas pálpebras para que ficassem mais pesadas, Joana esforçava-se em não fechar os olhos porque tinha medo de adormecer. O cansaço conseguia vencê-la a maioria das vezes, e entre os muitos sonhos que não recordava, também tinha pesadelos que lhe provocavam suores frios e uma angústia que a fazia chorar. Às vezes alto, porque o medo era muito, outras baixinho para não acordar os pais. E assim ficava, virada para a parede, na parte mais escura da cama, para que os maus sonhos, que segundo ela entravam pela janela, não a vissem e fossem procurar outros quartos onde espalhar o medo. Um dia, os pais tiveram de fazer uma viagem, e como estava em período de férias, deixaram-na em casa da avó Clara, que tinha uma pequena casa frente ao mar, na Póvoa de Varzim. Joana gostava muito dessa avó, que não via tanto quanto gostaria, e tinha o dom de saber as razões do inexplicável e de encontrar soluções para todos os problemas. Também curava com remédios caseiros desde uma tosse forte, - com xarope feito à base de rodelas finas de beterraba que polvilhava com açúcar e deixava de um dia para o outro, até que o líquido de uma cor de vinho escuro enchia o fundo do prato – até ataques de soluços, bebendo água ao contrário, ou seja com o tronco do corpo para a frente e a cabeça virada para o umbigo, os dentes batendo no lado oposto do copo e a água entrando pelo palato e indo parar à garganta e não ao nariz como se supunha. A avó Clara também a levava a conhecer os segredos do mar; ensinava-lhe a distinguir o cheiro das algas, das lapas, e de como as repugnantes e viscosas alforrecas, ao deslizar na água, pareciam vestir-se com as suas melhores cores e rivalizavam nos rosas, azuis e amarelos. Perseguiam caranguejos invasores de conchas vazias e viam-se mudar de casa à medida que cresciam, e tantas eram as coisas que descobria que, quando chegava a noite, cansada de correr e brincar na praia, dormia dum sono pesado até de manhã. Uma noite mais escura que as outras, no meio do silêncio daquela casa velha, a avó ouviu um choro pequenino. Acendeu o candeeiro da mesinha de cabeceira e aproximando os óculos dos olhos ensonados conseguiu ler as horas no relógio: 4 da manhã! Levantou-se com calma e foi ao quarto contíguo ver o que é que se passava. Joana contou-lhe o pesadelo, onde apareciam feras e precipícios. A avó ouviu-a atentamente e no fim explicou-lhe que os sonhos maus, aqueles que carregam as más memórias das pessoas que os sonharam um dia, cansados das imagens feias que pesavam muito mais do que as bonitas, atiram-nas para as camas dos que dormem, de preferencia para as dos meninos, que são aqueles que melhor as absorvem, libertando-se assim do seu desassossego, passando-o simplesmente para outros. A avó, sem acender a luz, porque conhecia os cantos da sua casa e dos móveis ao ponto de poder andar às cegas, foi buscar o remédio para o mal da neta. Na cozinha, pegou um copo de vidro transparente e, depois de pôr no fundo uma pedra pequena, das que se encontram vulgarmente no campo ou nas margens dos rios, encheu-o de água da torneira e voltou com ele para junto da Joana. Contou-lhe que as pedras têm o poder de atrair os pesadelos através da água, e uma vez lá dentro não conseguem sair, e que, se todas as noites pusesse um copo com a pedra e água limpa na mesinha de cabeceira, os pesadelos mergulhariam nela e não iriam incomodar os seus sonhos. O resto da noite passou sem mais sobressaltos. A partir de então, todas as noites, antes de ir para a cama, Joana vai buscar o seu copo com a pedra e a água e, todas as manhãs, quando acorda bem disposta por ter passado a noite a sonhar com cavalinhos e estrelas do mar, despeja no lavatório a água cheia de maus sonhos. Lisboa, 5 de Maio 2000 | ![]() |
Número 7
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Paleta e Pequenas Coisas