Escrevi «A lnstrução dos Amantes» quando comecei a ter medo de me esquecer do sabor violento e vagaroso da paixão. Estava quase a dizer «primeira paixão», como se os sentimentos não fossem blocos de imobilidade, imunes às vaidades do tempo e aos humanos esforços da evolução. Quis que o título fosse irónico q. b. e redundante como o coração: a verdade, a minha verdade, é que aquilo a que chamamos instrução é insensibilização e esquecimento, estratégias de sobrevivência ao absoluto que nos impele para a fusão final, a obsessão, a morte. Na viragem dos trinta anos, dei por mim demasiado atenta aos números e às cronologias, a contar pelos dedos amores, memórias, trabalhos, tentada a somar vitórias e diminuir derrotas como uma criança insegura ou uma mulher madura. A maturidade parece ser o grande mito substituto: já que os deuses estão, no mínimo, loucos, os homens (e agora até as mulheres) tomam-se por seres livres, racionais, clarividentes e a caminho da infalibilidade. Enfim, maduros. Quanta candura se esconde nas arcas da presunção. Como se a maturidade não fosse um comércio de medos: troca-se um sótão inteiro de fantasmas invisíveis (a paixão, a eternidade, a ressurreição, o destino, a alma) por uma colecção de medos físicos (medo de deslizar pelo corrimão da escada, medo do desemprego, medo dos ladrões, medo das doenças, etc.). É um negócio arriscado, porque ninguém nos pode garantir que os medos impalpáveis não se aproveitem da sua invisibilidade para se agarrarem às arestas dos medos visíveis. O certo é que, com o passar dos anos, julgamos que aprendemos a amar e a desamar e a fazer lutos e transferências. Enfim; temos toda a parafernália de que precisamos para uma saudável ginástica sentimental. Amamos porque, desamamos quando, gerimo-nos parcimoniosamente. Mas o comércio dos medos nunca resulta por completo. Sobra sempre um pó de fantasma, pronto a desfazer-se em luz e água dentro dos nossos olhos. Não, não se trata de recusar a terrível aridez da idade adulta, ou de incensar os primeiros ciclos de trabalhos e amores como os melhores anos da nossa vida. Passo a explicar: a minha teoria para-sociológica, nada científica mas convicta, é de que o estado adulto repete em embrulho mais bem acabado o viver da infância. Como a criança, o adulto completo é aquele que se interessa um pouco por tudo e muito por nada, de forma a defender-se de grandes exposições e dramas definitivos. Sempre atarefados e prudentemente impacientes, crianças e adultos vivem fora do negrume das paixões extremas. O adolescente, pelo contrário, interessa-se muito por uma meia dúzia de coisas, sentimentos e pessoas, e despreza tudo o que disso sobra. Claro que hoje em dia é fácil romantizar os adolescentes, porque a juventude tornou-se uma categoria de consumo útil, e portanto louvada e publicitada por políticos e empresários. Os bancos criaram contas e cartões especiais, a moda inventou marcas só para eles, os anticoncepcionais saltaram para os supermercados, substituindo primorosamente o óleo de fígado de bacalhau, as mesadas aumentaram, Os horários expandiram-se, as campanhas eleitorais exaltaram-nos em câmara lenta a imagem da Grécia antiga. lnvenção recente? Não. Os adolescentes sempre existiram; novos, a bem dizer, são os velhos. No inicio do século, uma criança em cada cinco morria antes dos cinco anos. Ate há muito pouco tempo, as pessoas acasalavam aos treze anos e a esperança de vida era de cinquenta anos. O mundo ocidental sempre foi governado por miúdos, e não me parece que tenha sofrido alterações de maturidade quando os lideres começaram a envelhecer. Actualmente, os homens e as mulheres beneficiam de um suplemento de vida disponível da ordem dos vinte anos (entre os sessenta e os oitenta anos) , ou seja, tão longo como a infância e a adolescência. Só a partir do século XIX o adolescente aparece como figura separada, como herói e criador. Foi o romantismo alemão, cujo expoente máximo será o Werther de Goethe, quem deu crédito à ideia da juventude como uma fase da vida com um valor intrínseco, etariamente definido. Quando, em 1905, o psicólogo norte-americano Stanley Hall inaugurava oficialmente as comemorações científicas da adolescência, com dois grossos calhamaços de análise resultantes de um inquérito à miudagem do seu país, ![]() não imaginava estar a atear o rastilho de um novo género de literatura. Era o fim dos dias de ouro dos pater famílias: a partir de agora, o mau feitio dos petizes tinha uma razão de ser e muitas reivindicações a fazer. Em «A Depressão no Adolescente», (Afrontamento, 1984) Carlos Amaral Dias e Teresa Nunes Vicente sublinhavam que nas obras sobre a adolescência «se vê claramente o quanto os problemas dos jovens sintetizam a patologia dominante da sociedade contemporânea: a angústia, a solidão, a falta de sentimentos profundos (a morosidade) o aborrecimento, a falta de alegria». Por outro lado, em 1980, num artigo intitulado «La jeunesse n’est qu’un mot», Pierre Bourdieu assinalava o carácter abstracto e construído das classes de idade: um adolescente trabalhador não cabe no mesmo saco de um estudante. Em Portugal, Daniel Sampaio tem publicado uma série de livros pioneiros (até pela comunhão entre transparência e profundidade), desmistificando todas as ideias feitas e apriorísticas sobre isso a que chamamos juventude. | ![]() Psicólogos e sociólogos (por exemplo, Manuela Fazenda Martins em «A Tentativa de Suicídio Adolescente» (Afrontamento, 1990) verificam que nos confrontamos hoje com uma nova fase, a pós-adolescência, definida sobretudo, de um ponto de vista sociológico, pela dificuldade de acesso ao mundo do trabalho. Ora, o obstáculo é o grande chamariz da paixão; quando a vida real se torna impossível, a vertigem surge como alternativa total, numa rendição total ao sonho, exterior ao correr dos dias. ![]() Foi isso que eu quis contar, em «A lnstrução dos Amantes»: a paixão como resistência ao tempo. Só nesse sentido é que a paixão é a incansável reprise da adolescência, que foge ao ar do tempo fechando as portas sobre si própria. Falamos daquela determinação para a missa negra da felicidade que acudiu a Romeu e Julieta, a definitiva Julieta que ninguém desconsiderou como adolescente, apesar dos seus parcos catorze anos. Creio que esta confusão de sentidos e sentimentos a que chamamos nova desordem amorosa tem a ver com o fim dos interditos. Esse grande mito ocidental que é a paixão confronta-se agora pela primeira vez com o seu mais poderoso antídoto, a que podemos chamar romanticamente, amor, ou, mais simplesmente, vida partilhada. Os casamentos marcados, os destinos traçados a negro espicaçavam os mundos contrários. Mas que fazer, passada a moda do degredo e das grades de convento? Inventaram-se outras algemas: o amor sortido, conhecido em certos meios pelo eufemismo de amor Iivre, o flirt modernaço, o beguin elegante, o affaire entre duas viagens de affaires. A geografia (política ou territorial) cumpre no mundo contemporâneo o papel tirano que dantes cabia às famílias. Quis dar conta destas mutações e da permanência, para lá de todas as contingências, desse ideal de amar o amor que norteia o nosso ocidente, como anotou Denis de Rougemont. Quis ainda falar da paixão como acto radical, gesto de luz e revolta, fenómeno que rompe as conveniências sociais estabelecidas e por isso instaura uma pequena revolução. Não pretendia escrever uma história de iniciação, mas acabei por me dar conta de que não há outras. E acabei por verificar que o tema da iniciação atravessa a maioria dos romances que mais me interessam - pela ruptura formal e filosófica que realizam- na literatura portuguesa do século XX. São eles: «Nome de Guerra», de Almada Negreiros, «Sinais de Fogo», de Jorge de Sena, «Manhã Submersa» e «Para Sempre» de Vergílio Ferreira ,«O Que Diz Molero», de Dinis Machado, «Retracto Dum Amigo Enquanto Falo» de Eduarda Dionísio, a «Tetralogia Lusitana» de Almeida Faria, «Missa in Albis» de Maria Velho da Costa ou «Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura», de António Lobo Antunes. E só sei que não sei que temperos fogem à paixão, para que tanto e tão cruamente ela enjoe o amor. Sei apenas que assim é, e que não há sobre a Terra concerto possível para estas duas vozes, que são as do poder maior. O poder da mágoa, que tudo domina, e que nos abre a estreita porta da instrução para a felicidade. Seja lá isso o que for. |