
7/1
Uma manhã de sol, sem aguaceiros, quase sem nuvens, e logo este pequeno alívio, este ligeiro deslassar do nó, este leve amaciar da pedra na garganta. Ficar aqui, nesta manhã. Sempre nesta manhã, sempre rodeada deste sol. Resistir ao movimento de rotação da terra. Alhear-me do mundo. Permanecer quieta e atraída pela luz. Como um girassol.
Resignar-me. Aceitar – até quando? – o princípio da realidade, a alternância entre pequenas luzes e a noite. Sentar-me anichada ao calor da lareira, de costas para a televisão. Assistir assim à campanha eleitoral, sem imagens, só com as vozes joviais dos candidatos que se tornam peixeiras (blrrr, quantos duches por dia?), almocreves (então e isto quanto é que custa, ó amigo? Não não não eu estava só a ver, não é para levar nada) e faz-tudos, descendo ao povo para que o povo condescenda e ponha a cruzinha ao lado da cara solene de Suas Excelências Narcissíssimas.
Sem imagens torna-se ainda mais caricato tudo isto e quase se tem pena dos incansáveis candidatos. Aliás a palavra candidato sugere imediatamente uma espécie de transpersonalização – o aristocrata a imitar o povo, o povo a imitar o burguês, o tolo a imitar o intelectual e vice-versa, o esperto a imitá-los a todos segundo as exigências dos jurados - com vista ao exercício do poder. É assim nas misses, nos clubes de futebol, nos bigbrothers, na política. Figuras tristes. É preciso fazer um grande esforço de depuração para não as confundir com o valor, intrínseco e real, de alguns dos intervenientes. Há dois que fingem menos, e nisso merecem aplausos: aquele, o do PC, que nunca fingiu que era candidato, e o Rosas do Bloco, que antes das palavras sisudas faz ouvir o fumo do cachimbo e consegue opor a sobriedade às provocações do candidato que não é nem deixa ser.
Anichada à lareira, de costas para a televisão. Como um girassol.
22/1
Uma mulher sentada articulava a dor em palavras difíceis, legendadas, e lágrimas. Um filho pequeno ao seu lado direito, um filho pequeno ao seu lado esquerdo, suportavam a dor com o silêncio e as mãos em movimentos desconexos – uma unha mordida, um esfregar de joelhos, um balouçar de dedos. Os três perguntavam e agora? Dantes ele (marido, pai) estava longe mas mandava dinheiro, nós não podemos trabalhar, agora ele também não.
Foi nessa altura que apareceu Nicolae (pai, marido) em Portugal, deitado numa cama, tetraplégico por causa de um acidente de trabalho. Clandestino.
Depois veio Vladimir, que é arquitecto mas em Portugal só desenha à noite, à luz da vela, num tugúrio sem casa de banho, nem sonhos, nem nada. E a seguir Igor, que é médico, mas passa os dias a alisar soalhos.
Escravos. Todos escravos num país que se orgulha de ter abolido a escravatura antes dos outros mas agora tem muitas obras gigantescas para exibir aos mesmos outros e muitos amos que como todos os seus antepassados resumem a vida ao delírio de ter. Contra esta gente não há leis, mesmo que se acredite na boa vontade do legislador. Não há leis porque eles não sabem o que é isso, não sabem nada a não ser a forma de engordar extractos bancários.
Não é preciso fazer esforço para simpatizar com estes escravos, tão médicos, arquitectos, ingénuos, brancos, determinados, sozinhos, como nós. Deve ser por isso que há tempos tive um sonho em que aparecia um insecto lindíssimo, com uma cauda lilás e uns olhitos brilhantes, que quando olharam para mim se transformaram numa menina linda. E atrás dela uma família inteira de insectos, escravos, lindos, a pedir acolhimento. Adoptámo-nos uns aos outros e ficámos um pouco menos sós.
5/2
Morreu Xenakis e cheguei a casa com vontade de ir pôr a tocar um disco dele. Não tanto para evocar, mas para tentar um elo que nunca encontrei, a ligação com um momento, com um impulso musical que tanto nos princípios se assemelha ao meu impulso narrativo (o jogo matemático não para ditar mas para multiplicar caminhos aleatórios infinitos) e tanto na realização dele se afasta. Mas isto dos impulsos tem muito que se lhe diga. À conta deles deixamos que a vontade enfraqueça, se torne incorrigível, tudo com o mais descarado dos sorrisos inocentes. E foi assim que ao procurar o lugar de Xenakis entre os discos deixei que a mão direita parasse nos Poemas Sinfónicos de Dvorják e já não os largasse por nada deste mundo.
É que isto das afinidades e dos gostos, tal como os impulsos, também dá que pensar. Gostei dos Poemas Sinfónicos (tarde, tarde) ainda antes de saber que foram inspirados em histórias tradicionais checas e que o meu preferido – A Bruxa do Meio-Dia – fala da personagem sinistra que amedrontava os meninos malcomportados. Como o papão que espreita do telhado à espera que o bebé faça uma birra para não comer a sopa e foge ele próprio assustado com a voz da mãe a cantar uma cantiga de embalar para o menino dormir um soninho descansado. Gosto dos Poemas Sinfónicos indiferente ao papel que desempenharam na transição da música checa para a linguagem tonal do século XX que conduziu a Janácek etc. etc.
Os impulsos, as afinidades, os gostos, as histórias ancestrais. É assim que a vida me vai timidamente alumiando.
27/2
Confesso que tinha comprado o livro, não sei há quanto tempo, mais pelo título – Contingência, Ironia e Solidariedade – do que pelo autor, Richard Rorty, de quem conhecia algumas referências mas não um livro completo. E a certa altura, em jeito de síntese da sua tese de partida, leio: uma sociedade liberal é uma sociedade que se contenta com chamar «verdadeiro» (ou «certo» ou «justo») ao resultado, seja ele qual for, de uma comunicação não distorcida, a uma perspectiva, seja ela qual for, que vença num encontro livre e aberto. Esta substituição equivale a pôr de parte a imagem de uma harmonia preestabelecida entre o sujeito humano e o objecto do conhecimento e, assim, a pôr de parte a problemática epistemológica-metafísica tradicional.
Tão tentador, não é? aderir a uma concepção assim, como se pudesse trazer, qual aspirina, o alívio rápido e eficaz do tormento de questionar permanentemente o que é ser neste mundo. Mas então porque é que, mal passa o efeito do comprimido, a dor de cabeça volta sempre ao local do crime, da pergunta? Não me parece que venha só do cepticismo (da ironia?) a relutância à adesão. Virá da própria expressão que se pretende, com aplausos, definir? Não sei, mas não faz mal, não tenciono tomar a aspirina, resta-me ir continuando a perguntar enquanto leio.
5/3
A tragédia foi ontem à noite mas só hoje foi conhecida a sua dimensão e as causas começaram a emergir do lodo. A queda do pilar central da ponte de Entre-os-Rios sobre o Douro carregado de areia e fúria, abriu o abismo para os passageiros de um autocarro que voltava de excursão. Mais de sessenta cadáveres ainda por resgatar. E com a queda do pilar da ponte caiu o do governo, o bombeiro voluntário do PS, o ex-ministro do Equipamento Social, Jorge Coelho. De forma expedita e voluntária, num gesto de alcance político assinalável, muito provavelmente para se dedicar à construção de outras obras de engenharia mais ou menos civil.
Eu não tinha dito há dias que até os terramotos são diferentes neste mundo alheio às proporções? Também as outras iras da natureza o são, e em Portugal mandam ainda os prantos sobre os sustos. Porque tudo é muito velho e gasto, o dinheiro vindo da longínqua Europa não chega às causas públicas, os cuidados não chegam ao exterior das sedes dos partidos, governar é só uma forma de gerir os diversos poderes entre eleições. Nem a tragédia servirá para alguma coisa? Alguma vez mudará profundamente a perspectiva do exercício do poder?
21/3
Hoje, dia que oficialmente é o primeiro da primavera e na realidade o centésimo quinquagésimo deste inverno furioso, diz o jornal que são comemorados nada menos do que quatro dias mundiais: o da poesia, o do sono, o das florestas e o da eliminação da discriminação social. Considerando que a luta contra a discriminação é um dos meus exercícios quotidianos, que não tenho vocação para capuchinho vermelho e que mantenho uma relação cordial com as insónias, fico com a poesia, a minha eleita. Só que hoje não estou virada para lirismos. É que as cheias voltaram a soterrar pessoas, as águas do Douro engoliram de novo o autocarro e quase os esforçadíssimos mergulhadores, a plataforma petrolífera acabou mesmo por se afundar no Rio de Janeiro, a professora de português do Filipe mandou resumir a Odisseia em 15 linhas, a ETA fez a 29ª vítima desde o fim da trégua, Berlusconi está à frente nas sondagens, os Balcãs estão de novo à beira do abismo, os EUA «não forçarão a paz» no Médio Oriente. Hoje, 21 de Março de 2001, quero celebrar a poesia irada.
Venho falar por vossa boca morta./ Através da terra juntai todos/ os silenciosos lábios derramados/ e lá do fundo falai-me nesta noite/ qual se eu estivesse ancorado convosco,/ contai-me tudo, cadeia por cadeia,/ ou até elo por elo, e passo a passo,/ aguçai as facas que guardastes,/ colocai-as no meu peito e em minha mão,/ como um rio de raios amarelos,/ como um rio de tigres enterrados,/ e deixai-me chorar horas, dias, anos,/ idades cegas, séculos estelares. ( Pablo Neruda, Antologia).
4/5
Atlas apoiou os Titãs, por isso foi condenado por Zeus a trazer os céus aos ombros para sempre.
Sísifo, trapaceiro e desobediente, foi condenado ao tormento eterno em Tártaro: obrigado a empurrar um pesado rochedo até ao cimo do monte. Quando está quase a aproximar-se do cimo o rochedo resvala e tudo volta ao princípio, para sempre.
Mas Maria das Dores? Maria das Dores nunca nos seus setenta e cinco anos de vida foi traidora nem desobediente, pelo menos que constasse da reportagem televisiva onde entrou como parceira do protagonista e saiu arrebatando-lhe justamente a posição. Pelo contrário. Parceira obediente, ágil, leal, que falta terá ela cometido para merecer o castigo da pedra? A pedra que vai buscar ao mato e carrega às costas, mais de trinta quilos, vimos nós na reportagem. E quando deposita a pedra aos pés do amo, para ela, pedra, só, os olhos dele são, que de sublime acordo com as mãos a transforma em lindíssimas esculturas – uma eva, um adão, uma fama – arrancadas à matéria inerte pelo sonho do escultor. Para ela, Maria das Dores, só o nome que lhe deram e a esperança de que um dia. Havendo saúde já não se pode dizer mal da vida, mas o meu sonho era que o meu marido gostasse de mim. Sorri na direcção da câmara porque era uma vergonha aparecer a chorar na televisão. E no dia seguinte regressa ao mato, carrega às costas a pedra para depositar aos pés do artista que só por ela, pedra, se enamora. Carrega o sonho para oferecer ao velho sonhador.
2/6
A fotografia a cores ocupa quase metade da primeira página do Público. À primeira vista confundi-o com um pequeno cantor prodígio – o microfone bem seguro nos dedos, os lábios cheios de luz entreabertos como numa cantiga. Depois li a brevíssima identificação - símbolo da luta contra a sida na África do Sul - e reparei no que estava inscrito sob o nome: duas datas que limitam o tempo, o registo da morte. Entretanto, claro, reparei nos olhos que convocam para o mundo o sentido oposto à crueldade e estremeci quando olhei para a primeira das datas inscritas sob o nome – 1989 – o ano do nascimento do meu filho. Tentei várias vezes guardar o nome num lugar mais seguro do que uma página de jornal, ainda que primeira. Nkosi Johnson, Nkosi Johnson, Nkosi Johnson, repetia, para nunca esquecer o nome do menino que morreu. Lembro-me de há uns tempos ter lido que a doença lhe tinha sido transmitida pelos pais, ambos também já mortos. E dou por mim a considerar muito correcta e ridícula a recentemente obrigatória licença de paternidade durante os cinco dias subsequentes ao nascimento. Porque entre pai e filho cinco dias não são nada, nem sequer doze anos, e um minuto, até o olhar breve de um segundo, pode ser a vida. Ou a morte, a sua coroação. Tudo o mesmo estremecimento de amor e mágoa.
Agora percebo que estava certa quando comecei por confundi-lo com um pequeno cantor prodígio. O que importa é reconhecer Nkosi Johnson – filho de John – como um menino só, num palco involuntário. Ou a mover ligeiramente o mundo no sentido oposto à crueldade, e seguir-lhe o caminho.
12/7
O tocador debruçava-se para o coração da guitarra e queria ouvir o seu próprio coração. Ou talvez o coração de quem nele ouviu a melodia e o lume pela primeira vez. De quem se enleou, nervos e dedos, na música que nos chegava como o respirar. Fundo, penetrando as cordas, a música o próprio desespero, o único caminho. O respirar que se ouve até no discos e que os anima com a perfeição. Pedro Jóia tocava Carlos Paredes no pequeno auditório da FNAC do Cascaishopping, criando e deslumbrando com a memória do cansado criador. Apetecia nunca mais ouvir outro silêncio.
20/7
- Mais est-ce qu’ils croient au bonheur, tous ces gens là?
É caso para fazer esta pergunta, fruto da curiosidade de Carole, uma das personagens de Jean-Claude Izoo («Vivre Fatigue»), perante a multidão que invadiu as ruas de Génova em protesto contra a globalização a propósito da cimeira do G-8. Eles reagem, todos, ao grito, ao pontapé, esperneando, como há tempos escrevi, mão na mão, punho cerrado, cabelos longos, curtos, palavras duras, impropérios, silêncios, em grupos do acaso, em bandos de (anti)globe trotters, amando-se e odiando-se entre si. Reagem todos, e isso é bom. Porque não se pode olhar para o espectáculo do mundo liberalizado sem virar a cabeça, vomitar ou resistir. É preciso que haja quem resista e apesar da estranheza talvez a esquerda, ou seja a força do inconformismo, seja agora isto. Agora é preciso ser intolerante, teimoso, barulhento, sagaz, mais forte do que a fortaleza das forças de segurança, mais visível do que as eternas estrelas, visível para defender os invisíveis, os que se mostram apenas quando a morte já tomou conta das imagens e nos vem rir na cara. É preciso resistir, ainda que através desta estranheza, desta heterogeneidade, deste excesso que ainda é diminuto, que ainda é inocente, perante a arrogância dos que mandam e dos que mandam nos que mandam.
- Mais est-ce qu’ils croient au bonheur, tous ces gens là?
Ou seja, será que deste movimento feito de vários movimentos reactivos sairá um projecto verdadeiro? Aqueles que, como eu, se organizaram, marcharam, pintaram paredes, cantaram em uníssono, por acreditarem cegamente na felicidade, e que agora têm dificuldade em aceitar outras formas de bater o pé, gostariam de pensar que sim. Gostariam de ouvir uma resposta diferente da que no livro (e no título respectivo) foi dada por Aurore:
- Je vais te dire, quand t’es dans la merde jusqu’au cou, tu penses qu’à t’en sortir. Tenir jusqu’à la fin du mois. Et si t’as un boulot, tu te démerdes pour le garder.
14/8
Quando começou, há quase vinte anos, eram só os ecos de uma maldição, uma partida pregada pelo bom deus. Era longe e com os ímpios, os impuros, os que merecem o castigo. Porque há uma ordem natural, macho e fêmea os criou dizendo crescei e multiplicai-vos. Multiplicai-vos à medida da vossa fome, do vosso desatino, para isso vos dotei com o livre arbítrio e lavo as mãos como alguns o farão por mim e pelo meu nome. Multiplicai-vos, disse, macho e fêmea, toda a falta a este mandamento será duramente castigada. Assim parecia ser, naquela atura, e nós a salvo. Quando soubemos da contaminação dos hemofílicos talvez o nosso comum senso de justiça tenha levado um soco, mas ainda eram os outros, desta vez os excluídos da sorte, de tal modo que a indignação não chegou para punir os responsáveis. Só muitos anos depois é que soubemos que todos nós somos suspeitos em vias de ser capturados num deslize. Um pequeno descuido, uma pequenina confiança, pode ser a morte do artista quando jovem. Claro que – deus quando dá o mal aos seus filhos dilectos também dá a mezinha – nessa altura já a indústria farmacêutica andava atrás de fórmulas lucrativas e acabou por encontrar maneira de pagarmos por uma doença crónica. Regressou o conforto às nossas almas que anseiam por um lugar no céu e noites de festa sem maus sonhos. Os outros, os excluídos da sorte, também hão-de dormir em paz e ganhar o céu, à sua maneira. Leio no «Público» que Portugal é o país da Europa com a maior incidência de sida. Não percebo por que razão me terá desgostado o primeiro impacto da notícia. Demasiado perto de África e da sua desdita, demasiados anos protegidos por deus.
11/9
Hoje começou o século. Todos vimos, incrédulos, em directo, como o século começou: os aviões despenhando-se sobre a cidade mais alta do planeta, a invenção da morte como nenhum profeta imaginou. Daqui a dois mil anos que nome se dará a esta guerra, a esta era da pré-história? Haverá ainda alguém para a nomear?
12/9
Nem o mundo nem eu conseguimos ainda entrever um raiozinho de luz. Nenhum de nós saiu ileso dos escombros. Todos estamos cobertos de pó e sangue aberto numa ferida comum, alheia ao ADN.
Será a guerra entre o bem e o mal, como lhe chamou G.W. Bush, o que vem a seguir? Mas não é essa a guerra sem vitória que se renova em cada instante, em cada fragmento do humano, desde que humanos nos reconhecemos? Porque nos parece tão decisivo este momento? Talvez porque nunca antes tivemos tantos instrumentos para enxergar o abismo à nossa frente e decidir como enfrentá-lo. Talvez seja preciso então usá-los com rigor, não regressar ao primitivo instinto, encontrar as respostas no que frutificou ao longo de vários séculos de interrogações, nesse pequeno núcleo de valores que com tanto sofrimento julgamos ter adquirido, já que é em nome deles que a luta se prepara. Julgar e punir os responsáveis, estejam onde estiverem, claro. Todos eles, sobretudo os que, tomados pela soberba invejosa e cruel, em nome de deus mandam morrer. Preservar o futuro. Mas não interromper a reflexão. Discernir qual é o mal, onde está o inimigo, antes de o reduzir a um rosto acobreado e a um nome, seja ele Bin Laden ou Islão, pois que tal inimigo se aproveitou de cada encolher de ombros, de cada proclamação omnipotente, para entre nós achar acolhimento. Opressão, cegueira, terror, onde quer que se alojem, é este o círculo a romper e urge aproveitar o momento para o tentar.
Longas noites se esperam, curto tempo. Uma mão para sacudir o pó dos olhos, a outra para nascer neste lugar de ausência.
8/10
Difícil tomar uma posição estruturada perante a guerra que de repente tomou conta de nós. Porque somos contra a morte e contra o ódio que se geram um ao outro, porque nos repugna a devastação da inocência e a expressão danos colaterais para a designar, porque sabemos que não resolverá os problemas essenciais. Mas que fazer? Ao vir de microfone em punho e dedo em riste dizer ao mundo que a América nunca mais terá paz, Bin Laden ajuda Bush a sustentar a legítima defesa que invoca para justificar o ataque, proclamando o elemento que lhe podia faltar – a actualidade da agressão. Ao aparecer assim desafiando o mundo e condenando-o à catástrofe é Bin Laden quem reitera a declaração de guerra que lançara a 11 de Setembro, é ele quem justifica a insustentável construção do «good against evil». «Quem intercede pelo bem, participa do bem. Quem intercede pelo mal, participa do mal. Deus tem poder sobre tudo» (Alcorão, 4,87). Não há outra divindade a não ser Deus e Bin Laden é o seu Profeta.
Já escrevi neste diário que todo o poder precisa de inimigos e Bush parece milagrosamente ter encontrado o inimigo à medida da sua ambição. Queridos inimigos, G.W. e Bin Laden, que mutuamente se ajudam a realizar os respectivos impulsos de poder. Bush encontrou o inimigo certo para pôr em prática os seus desígnios hegemónicos com todo o mundo a aplaudir de pé. Eu continuo sentada mas não consigo alinhar com as posições que condenam o ataque só por ele ser americano, sob o pretexto de que a política arrogante da América tem, como efectivamente tem, responsabilidade pela situação criada, sem avançarem uma eficaz alternativa. Pergunto-lhes então o que fazer contra o domínio da barbárie terrorista e eles balbuciam «medidas de carácter político», «ONU», «espiral de violência», «civilização islâmica». Tudo isso é verdade, mas.
Mudanças políticas, claro, mas evitarão próximos ataques terroristas a alvos inocentes com aviões ou gases ou bactérias fatais? A ONU – o seu Conselho de Segurança, a própria China – já caucionou a acção americana. A espiral de violência bárbara tem origens antigas e diversas mas só fez a sua entrada triunfal no dia 11 de Setembro: milhares de inocentes mortos numa manhã em contexto de paz não tem precedentes nem perdão. Não se trata de atacar a civilização islâmica, cuja individualidade digna de respeito nem se põe em causa, até porque Bin Laden e os seus cúmplices talibãs são uma excrescência, apenas dela se servem como uma referência de legitimação para os seus actos hediondos.
Com desgosto sou levada a crer perante estas posições resguardadas por um pseudo-pacifismo infrutuoso que tantos anos a tentarem convencer-se a si próprios de que certos fins justificam quaisquer meios, levam uma certa esquerda a involuntariamente secundarizar o horror terrorista relativamente ao impulso antiamericano, sem ter assumido como seu o combate fundamental pela liberdade, afinal o mesmo que há-de levar-nos a rejeitar qualquer tentação de postergar direitos essenciais em nome do conforto securitário.
Sejamos claros: o facto de termos razões de sobra para vociferar contra a hegemonia americana e o sofrimento que tem causado ao mundo não nos deve levar ao erro de alinhar com tudo o que se lhe oponha, muito menos com criminosos tiranos que adoram a morte em vez da vida, em vez de Deus cujo nome em vão invocam. Toda a diferença deve ser tolerada, assim nos ensinaram os princípios tão indelevelmente inscritos em nós que às vezes não reparamos que se trata de grandes aquisições civilizacionais, e é precisamente para os defender que devemos considerar intolerável não a diferença mas o crime.
Desolador este espectáculo do mundo. Deses-perante, porque já não o vamos conhecer melhor. Inabitável. Pré-histórico, na melhor das hipóteses. Tantos passos atrás. Em que caminho?
26/10
No dia em que os EUA bombardearam pela segunda vez as instalações da Cruz Vermelha em Cabul, arrasando os mantimentos destinados aos refugiados, no dia em que os talibans executaram um opositor histórico do regime em vias de negociar uma aceitável alternativa à iniquidade, no dia em que o antrax alastrou na Casa Branca, no Senado, na CIA, na Estação Central dos Correios, causando mais vítimas mortais, no dia em que tudo isto acontece
Os bonés amarelos e os chapéus espalmados dos enólogos, para identificar aquela espécie de neobacantes senis e masculinas, a vociferar em frente da Assembleia da República. E são os dos bonés amarelos e os dos trajes medievais e os camionistas e os taxistas e o ministro da Agricultura e o ministro da Economia e o ministro da Saúde e o Campelo do queijo e do gabinete para analisar o Orçamento e a CGTP e a UGT e o PSD e o PP e a maioria da bancada socialista e os outros que não têm coragem de falar alto mas também não concordam, acham excessivamente baixa, acham um escândalo, um desastre para a economia nacional, um desastre para as noitadas, um desastre para eles. Tudo por causa da descida para 0,2 g/l da taxa de alcoolémia permitida na condução de veículos. Já falei com abundância e ira neste diário sobre o desgosto que me causa a idolatria do automóvel. A sinistralidade nas estradas portuguesas é um dos mais trágicos indícios do triste rumo do país: sub-paraíso fiscal plantado à beira estrada para que cada português, isolado do mundo, saiba ascender à suprema glória de empunhar numa mão o volante, na outra o telemóvel. As trágicas consequências dos acidentes ( porque é que ainda se chamará «acidente» a um acontecimento tão previsível e banal como este?) de viação, muito superiores em gravidade e número às do antrax, só não põem em pânico dez milhões de portugueses porque só os outros dez milhões é que não sabem conduzir. Claro que não é só o álcool o responsável, mas nunca um comprovado co-autor foi absolvido por fuga dos restantes. Procurem-se e capturem-se também, com cartazes e fotografias e carimbos, ao jeito dos americanos, e já agora com mais tino e afinação do que aqueles que parecem ter as tropas deles (assim não vamos lá). Mas quanto ao álcool criminoso, muito bem capturado nos 0,2, não cedamos às cunhas. E ponham-se na estrada brigadas de fiscalização, com aparelhos actualizados e fiáveis para fazer as medições.