(Crónica)
Era 1978! K... descera de Coimbra com a missão de instalar e dirigir a recém-criada Escola de Polícia Judiciária, apropriadamente acomodada, ainda que provisoriamente, ali na Marquês da Fronteira, entre a Penitenciária e o Palácio da Justiça ... Era – repito – 1978! Formar um polícia, ainda que de investigação criminal, não era a mesma coisa que... continuar a formar polícias, mesmo que fossem de investigação criminal. Afinal era sempre de polícias que se tratava e – não esqueçamos – era 1978!
K... sentia que a imaginação podia ambicionar, agora com maior probabilidade, chegar, ainda que por momentos, ao Poder e acreditava mesmo que só assim o Poder se transformaria, ele próprio, em objecto de mudança. Ensinar filosofia a um candidato a polícia parecia-lhe, por isso, tão elementar como ministrar-lhe aulas de tiro. Nenhum polícia atira bem se não sabe por que razão atira, isto é, se não for ele, ele mesmo, a atirar, ele todo, para além do olho e do dedo indispensáveis à garantia do disparo certeiro. Atirar bem não é uma questão de pontaria, mas de consciência. Assim pensava K... talvez porque era 1978!
Exactamente em 1978, a Barraca levava à cena, como sempre pela mão de Helder Costa, o Zé do Telhado. Ora, nada melhor para suscitar a desejável atenção crítica de um futuro polícia, do que assistir à representação como se de uma verdadeira aula se tratasse...
Foi então, numa tarde de Junho igual às outras, que K... se dirigiu à Alexandre Herculano para adquirir os bilhetes, se possível todos, para o espectáculo do dia seguinte. Entre tabiques, logo à entrada, do lado esquerdo, uma jovem desalinhada (era 1978), ocupava a proposta de bilheteira que o tabuado envidraçado sugeria.
Muito boa tarde ... (pausa), Queria saber se é possível reservar, para amanhã, todos os bilhetes... (pausa) É para trazer os meus alunos ... (pausa longa), sou o director da Escola de Polícia Judiciária.
Num movimento sinuoso e esguio a jovem desalinhada levantou-se e caminhou às arrecuas para a pequena porta do fundo. Evoluía lentamente, com os olhos pregados em K... e com um sorriso sem expressão que lhe servia apenas de transporte até desaparecer. Desaparecer da vista, que não do ouvido, já que foi em aflitiva estridência que gritou para dentro:
- Ó Helder! Está aqui um gajo da Judiciária!...
Com a turbulência que se seguiu em fundo, contrastava a serenidade do Zeca Afonso, debruçado sobre a viola, e recolhido a um canto, dali ausente, perseguindo vampiros e em busca de meninos de oiro!
- Então o que é preciso?! - Foi assim que o outro perguntou. E a longa explicação de K... sem ter gerado, é certo, total tranquilidade, foi, porém, suficiente para garantir a reserva dos bilhetes. De todos os bilhetes ... isto é, de quase todos. É que, no dia seguinte, juntamente com os alunos e o director da Escola de Polícia Judiciária, assistia ao espectáculo, acompanhado por discreta comitiva e a convite da Barraca..., o general Vasco Gonçalves...
O Helder, com alguma excitação mal contida, circulava entre a assistência e ria garantindo aos seus a pública comicidade de algumas passagens, enquanto o Mário Viegas, nessa cena, fazendo de Guarda da Rainha, ao recrutar “braços fortes” para a “tropa”, lhes prometia, dentro do texto, “comida e dormida, um tanto por mês, farda e principalmente, principalmente, a estima de Sua Majestade”, e, fora do texto, entrada para a polícia e bilhetes à borla para o teatro!
Que rica aula!
Em 1 de Janeiro de 1983 entra em vigor um novo Código Penal. Mais uma vez a mudança adquiria contornos culturais profundos exigindo, além de um esforço de actualização no domínio da técnica jurídica, uma nova reflexão também ideológica diante de um diploma legislativo que partia do pressuposto

de que “toda a pena tem de ter como suporte axiológico – normativo uma culpa concreta” e de cunho radicalmente humanista que resultava da afirmação de serem “os homens compreendidos como estruturas abertas e dialogantes capazes de assumirem a sua própria liberdade”.
Por isso que a Gulbenkian se tenha disposto para as Jornadas sobre o Código Penal como Acontecimento Cultural e, então, tenha sido já mais naturalmente aceite que, também sobre tal objecto, se pronunciassem Alçada Baptista, Abelaira ou Isabel da Nóbrega; que um debate sobre o “Zé do Telhado”, tivesse reunido à mesma mesa António Lopes Ribeiro, Helder Costa e K..., ou o gajo da Judiciária; e que Luís Francisco Rebello tivesse proferido uma confe-rência sobre “A Crimi-nalidade no Teatro Por-tuguês”.
Entre Justiça e Teatro ia-se, assim, urdindo uma aproximação que não era mais, afinal, do que o reconhecimento agora renascido, daquilo que o tempo há muito havia fixado. De facto, “quem olhar atentamente verá, lá longe, nos confins da História, Calígulas e Antígonas, Édipos e Prometeus que, pelas mãos de Sófocles ou de Ésquilo e perante a imagem tutelar de Témis, mulher de Zeus, tecem ainda essa teia onde um dia se deixaram prender e ficaram para sempre cativos da cultura, o Teatro e a Justiça”.
E foi assim que, na formação de magistrados e no interior mesmo da sua escola se cruzaram textos como os da Bilha Quebrada, de Maria Não Me Mates Que Sou Tua Mãe, da Excepção e a Regra, do Dissidente Só, de Um Dia Na Capital Do Império, com nomes como os de Kleist, de Fernando Gomes, de Brecht, de Michel Vinavert, de António Ribeiro Chiado e, de novo, de Zeca Afonso e de Mário Viegas.

Este último feito Baal, peça maldita do Pobre B. B. e em cujo desempenho o Mário levava o Teatro à genialidade que só a Justiça absoluta se permite tentar igualar. Ainda assim, com importantes diferenças. Por um lado, segundo o pensamento de Roland Kessous, “no teatro quando acaba de se representar a última cena, sabe-se que se regressa à vida real, enquanto na vida judiciária, terminada a cena derradeira, nada se apaga e frequentemente há homens e mulheres que saem magoados”. Daí a necessidade de uma formação de magistrados que, sem descurar a preparação essencialmente técnica que assegura competência, não deixe de conceder especial atenção ao desafio da cultura indispensável à compree-nsão crítica do mundo e da vida, da sua evolução e da sua história, das suas grandezas e misérias.
Mas se é assim por um lado, por outro é também urgente reaprender a força e o papel daquilo a que Bernard Dort chama “Os Poderes do Teatro” e encontrar aí uma outra forma de realidade.
A que nos é dada, por exemplo, pela Saudade, com a qual, Bruno Bayen, identifica “o momento de maior comoção do teatro”. Saudade enquanto visitação da memória, saudade enquanto perpetuação do tempo e da sua gente. Saudade, assim, enquanto justiça.
Para ser aí, onde o Judiciário julga e afirma o que é mortal e transitório e por isso se transforma tantas vezes num injusto concreto, que o Teatro projecta o imaginário como caminho de imortalidade e de Justiça. Para ser assim, então, pela mão do Teatro e da sua Poesia, que hoje, quando já é 2001, seja possível ainda olhar para K... inclinado sobre os tabiques de uma pobre bilheteira e ouvir uma jovem aflita e desalinhada gritar para dentro:
- Ó Zeca... Ó Mário ... está aqui um gajo da Judiciária!
* Não inédito