
(Ficção)
Escolhemos a Tânia porque não fazia falta, era muito bronca e parada, via-se logo que nunca iria fazer nada na vida. Foi por isso que pensámos nela. Podia ter sido a Elizabeth, a Carina ou a Vanessa. Mas a Elizabeth jogava bem ao volley, a Carina pagava-nos cervejas e a Vanessa tinha namorado. A Tânia era a melhor para ser morta porque não andava no mundo a fazer nada.
Foi só por isso que a escolhemos, não havia nenhuma razão especial, nem tínhamos nada de pessoal contra ela. Podia ter sido outra qualquer. Calhou ser ela. Só isso.
A Germana ainda disse que nos podiam pôr numa casa de correcção ou irmos a tribunal, mas a Celeste disse que da casa de correcção a gente também fugia e quanto ao tribunal que se lixasse.
Isso foi da primeira vez que tocámos no assunto, mas não era a sério, estávamos só a dizer coisas da boca para fora. Na verdade nessa altura não tínhamos intenção de matar a Tânia. Estávamos só a pensar como seria se a matássamos.
Podíamos ter falado de outras coisas, se não estivéssemos fartas de falar sempre do mesmo. Do pai da Andreia, que se enfiava nela, do irmão da Débora que ia de manhã para a metadona e depois ficava todo o dia em casa a fumar e a ver televisão, da mãe da Sheila que esvaziava garrafas de aguardente e as escondia debaixo da cama, da minha avó, que não se dava com a minha mãe, embora tivesse que viver connosco porque não tinha casa, e gritava com a minha mãe e a minha mãe batia-lhe e era todos os dias a mesma coisa, além do caminho casa-escola e escola-casa. Do pai da Germana, que tinha sido despedido há dois anos e nunca mais arranjava outro emprego, do pai da Celeste que passava os dias no computador e nunca falava, da mãe que vagueava pela casa e não ouvia o que lhe perguntavam, da casa da Celeste, que ficava num bairro caro e tinha tudo o que se podia desejar, frigorífico, vídeo, gravador, carro na garagem e garrafas de champanhe na despensa. Podíamos ter-lhe chamado novamente estúpida por não aproveitar o que tinha, mas já nem valia a pena repetir-lhe isso, a Celeste encolhia sempre os ombros e dizia que se aborrecia de morte como nós.
Ou podíamos ter falado da escola e gozar com a aflição que a gente tinha dantes, por não passar. Agora a gente ria-se mas é da escola, e tanto se nos dava passar ou não, eram tudo balelas o que lá se aprendia, que se fodessem os Lusíadas, a gente tinha mais que fazer na vida.
A gente tinha era que viver e não estava a viver nada, era tudo muito chato e sempre igual. A única coisa diferente era a droga e a gente achava que também iria entrar nessa, mas por enquanto ainda não, só uns charros para passar o tempo, porque também havia muita chatice na droga, se bem que agora já tudo era mais fácil, porque a sociedade tinha passado a ser menos repressiva e mais livre, com salas de chuto e tudo o mais, mas tirando esse progresso tudo na vida era uma chatice e a gente não tinha aonde se agarrar.
No entanto algumas pessoas tinham vidas boas. Bastava ver as revistas: mulheres de vestidos de seda até aos pés, artistas de cinema, banquetes e desfiles de moda, raparigas lindíssimas de biquini e saltos de dez centímetros a serem beijadas por homens bronzeados, de tronco nu, à beira de piscinas, jovens lindos de morrer em carros descapotáveis que a seguir apanhavam um avião para as Caraíbas, deslizavam em pistas de ski ou tomavam drinks ao pôr do sol em Miami.
Há dois anos a Adelaide sonhava ser modelo e a Rute em ser miss. Nessa altura só tínhamos doze anos e não percebíamos nada do mundo, achávamos que bastava sermos bonitas e magras e estarmos prontas para ser fotografadas a sorrir. Colávamos fotografias de modelos na parede e imitávamos as poses. Eu fazia caras e gestos, a Celeste desabotoava a blusa e punha o peito para fora, a Germana levava as mãos diante dos olhos, como se fosse uma máquina, e fingia que disparava.
Conseguimos ficar magras porque não comíamos pão nem doces e bebíamos vinagre ao pequeno almoço, e quando não aguentámos mais pedimos ao tio da Adelaide que nos tirasse fotografias. Não ficaram mal, achámos até que podíamos ter chances.
Nessa altura o Zeferino falou-nos de um concurso que ia haver na televisão, para entrar numa novela, tinham anunciado à noite, depois do noticiário. Ficámos loucas e fomos confirmar. Era tudo verdade e mandámos as fotografias, mas não fomos escolhidas. Depois disseram que tinham aparecido dez mil a concorrer.
A Rute chorou e a Adelaide não comeu a semana inteira. Como era possível conseguir alguma vez qualquer coisa se se tinha sempre de lutar contra dez mil. Como se ia conseguir alguma vez ser a mais bonita, a mais esperta, a mais sorridente, a mais magra, a mais simpática, a mais sexy, a de saltos mais altos e peito mais levantado no biquini, ou todas essas coisas juntas. A vida era muito difícil e o melhor mesmo era desistir logo de tudo, disse a Rute.
Então o Zeferino falou-lhes do negócio dos filmes, era só despir-se e fazer umas cenas e ser fotografado ou filmado, não custava nada e ganhava-se do bom e do melhor e era um começo de carreira, depois ficava-se conhecido e podia-se logo ser actriz. Eu e a Germana também quisemos ir, mais a Celeste, mas o Zeferino escolheu a Rute e a Adelaide porque eram mais bonitas e nós ficámos cheias de raiva.
Mas isso foi há dois anos e não nos parece que elas tenham dado em grande coisa, deixaram de nos falar e dão-se grandes ares, mas andam cheias de olheiras e parecem velhas e quem subiu na vida foi o Zeferino, que até comprou um carro novo.
O que interessa é ter sorte. Pode-se gamar numa loja e arrecadar para o resto da vida sem ser apanhado, ou ganhar na lotaria. Ou ir à televisão, e ganhar cem mil numa noite. É só ter sorte. Ninguém sabe responder às perguntas que lá fazem, responde-se ao calhas e às vezes ganha-se. Ou pode-se entrar noutro jogo, na televisão: empurrar uma roda gigante e acertar num número. Mas ser escolhido para entrar no jogo também é uma questão de sorte.
A madrinha da Arlete ouve todas as manhãs o programa da mala. O telefone toca e alguém diz: Daqui fala a rádio, quanto dinheiro tem a mala? Quem acertar ganha. À madrinha da Arlete nunca telefonaram, no entanto ela passa as manhãs a ouvir para se manter informada. Se um dia lhe perguntarem, a vida dela muda. Por isso não desiste de ligar o rádio.
Melhor ainda que a rádio é a televisão. Um telefonema da televisão pode mudar a vida a qualquer um. Dizerem por exemplo: Você vem ao concurso. Aí já se tem tudo pago, é só andar em frente. Os da televisão têm cabeleireiro, maquilhadores, manicures, dizem que até dão o dinheiro para comprar roupa para se ir ao programa. E as lojas também oferecem tudo a quem lá vai. Se não, qualquer vizinho empresta. Para parecer bem na televisão não se regateia preço. Todos sabem que depois se fica rico e a quem é rico ninguém recusa nada.
Quem aparecia na televisão estava safo, dissémos. Os que lá andavam sempre nunca eram apanhados nem iam para a prisão, mesmo quando cometiam crimes e lhes punham processos. Arranjavam sempre modo de escapar, toda a gente sabia.
Foi por isso que não nos preocupámos quando a Germana falou em casa de correcção e tribunal. Até porque não estávamos a falar a sério em matar a Tânia, pensávamos nisso como se estivéssemos sentadas num sofá, a olhar para um écran. Víamos tudo muito claro, mas depois era como se bastasse carregar num botão para as coisas voltarem a ser como antes. Ela estar viva ou morta dependia de carregar num botão. Não era verdade, mas pensávamos como seria se fosse.
Punham fotografias nossas nos jornais, íamos aparecer nos noticiários e ser entrevistadas e estar nas bancas, nas capas das revistas, e escreviam livros sobre nós. Nunca nos havia de faltar emprego, de resto nem precisávamos de emprego porque se ganhava muito dinheiro só com ir à televisão e ser fotografado e fazer declarações e falar.
Matar a Tânia não ia ser difícil, era só escolher a melhor maneira. Íamos por exemplo apanhar o metro com ela e empurrávamo-la numa estação, um segundo antes de passar o combóio. Ou deitávamo-la abaixo da janela da casa da Vanessa, que vivia num prédio de doze andares. Dissemos.
Mas no metro havia o risco de não se saber que tínhamos sido nós a empurrá-la, podia pôr-se a hipótese de suicídio, todos os dias aconteciam coisas dessas. Com toda aquela gente apinhada nas plataformas, era difícil haver testemunhas a ver-nos empurrá-la. Na janela da Vanessa, havia o inconveniente de ela também querer participar, uma vez que emprestava a casa. Mas quatro pessoas era demais para nos darem atenção suficiente, três era o máximo para este tipo de coisa. Pelo menos foi o que pensámos.
Então lembrámo-nos do envenenamento. Veio-nos à cabeça várias vezes, pusemos a ideia de parte mas depois ela voltava, e a certa altura o dia a dia parecia-nos distante, a minha avó, a mãe da Celeste, o pai da Germana passavam por nós de fugida, sem peso, como se também eles fossem imagens num ecran. Olhávamo-los sem os ver, deixámos de ligar ao quotidiano, estávamos ligadas a outra coisa.
Veneno de ratos, pensámos primeiro. Mas devia ter uma sabor tão mau que a Tânia dava conta. Então pensámos em comprimidos para dormir. Bastava ir roubando alguns das embalagens, até juntar uns cinquenta.

Toda a gente tomava – o pai da Germana, a minha avó, o meu tio Arlindo, o pai da Celeste, a mãe da Adelaide. Fomos tirando aos poucos, agora um e depois outro. Não era difícil. Não era mesmo nada difícil, verificámos. Em poucos dias tínhamos um frasco quase cheio.
E depois era só dissolvê-los e metê-los numa garrafa de leite com chocolate. Não se ia notar alteração no sabor.
Também era fácil fazê-la engolir o chocolate. De certeza que sim.
Era mesmo tão fácil que quase não demos conta de ter acontecido.Aconteceu, simplesmente. Sem percalços, exactamente como tínhamos pensado.
Fizemos uns dias antes uma espécie de ensaio. Convidámos a Tânia para vir passear connosco, ela aceitou logo, porque nunca ninguém a convidava para nada. Estava contente e não desconfiou de coisa nenhuma, como podia desconfiar? Fomos caminhando por uns campos vagos, não muito longe da escola, um bom pedaço antes dos prédios que andam a construir. Não nos aproximámos dos prédios, embora quando saímos da escola já lá não houvesse operários, estava tudo sossegado, não se ouvia o barulho das máquinas.
A Tânia sentou-se numa pedra e demos-lhe do nosso lanche : pão, uma maçã e uma garrafa de leite com chocolate para cada uma. Comemos e bebemos e tudo se passou normalmente. Não havia razão para não ser igual quando a convidássemos outra vez, pensámos.
Ela veio logo connosco quando a convidámos, alguns dias depois, e parecia ainda mais contente, como se ir passear e lanchar connosco se estivesse a transformar num hábito. Perguntou-nos se íamos convidá-la mais vezes e ficou contente quando lhe dissemos que sim, porque até aquela altura ela nunca tinha encontrado companhia para nada, andava sempre sozinha.
Talvez por gratidão devorou o lanche com tanto entusiasmo e bebeu o leite até à última gota. Estávamos alegres e ela sentia-se à vontade. Tinha encontrado, finalmente, amigas e até nos parecia menos feia e atrasada. Era, sobretudo, obediente, fazia exactamente o que nós queríamos, quase sem precisarmos de lhe dizer nada.
Agora começava, por exemplo, a sentir sono e a ficar tonta, e, antes que se sentisse mal, gritasse por socorro ou chorasse, deitámo-la no meio de nós, encostámo-la a uma pedra e pusemos-lhe a cabeça por cima da mochila e de um casaco dobrado, para ficar mais confortável.
Perguntámos-lhe se estava bem e ela disse que sim, como se tivesse receio de nos desagradar, ou medo de que fôssemos embora e a deixássemos ali sozinha.
Ficamos contigo, dissémos, adivinhando o que ela pensava. Não tenhas medo e dorme.
Fizémos-lhe festas na cara, ela acenou com a cabeça e disse que se sentia mal.
Revirava os olhos e começou a ter vómitos, mas acabou por não vomitar porque entretanto ficou meia a dormir, mas continuava a gemer, virava-se para um lado e para o outro, com movimentos aflitos, e de vez em quando tinha uns arranques do estômago, fazia movimentos descontrolados e ouvia-se a respiração mais forte.
Parece um peixe fora de água, disse a Celeste, provavelmente está com dores.
Depois sossegou mais até parecer dormir profundamente. Então pegámos-lhe, a Germana segurou-a por debaixo dos braços, eu levantei-a pelos pés e levámo-la para o meio de umas ervas altas, logo mais adiante.
Deixámo-la ficar, tapada com o casaco da Germana, porque assim iam ter a prova de que tínhamos sido nós.
Só em casa nos assustámos com a ideia de que ela podia não morrer. Nessa altura teríamos tido todo aquele trabalho para nada. Tentativa de assassinato não seria notícia, porque tentativa de suicídio também não era. A não ser que se tratasse de uma grande estrela a tentar suicidar-se. Então já podia ter algum interesse como notícia, mas mesmo assim muito menos do que um suicídio verdadeiro. Tentativa de assassinato não era nada.
Assustámo-nos deveras e ficámos com raiva dela. Era tão desastrada e estúpida, saía-se sempre tão mal em tudo que podia falhar mais uma vez e não morrer. A ideia era tão aterradora que nos arrependemos de não ter escolhido a Vanessa, a Elizabete ou a Carina. Com tantas outras possíveis, tínhamos logo que escolher a Tânia.
Adormecemos a pensar que ela ia voltar à escola, no dia seguinte. Abrir a porta, atrasada como sempre, com ar de quem em anda no mundo por ver andar os mais, e sentar-se outra vez no fundo da sala, meio de lado na carteira, apática, olhando sem entender, como se continuasse a dormir. Ela ia voltar, tínhamos a certeza. Continuar como até aí, uma espécie de morta viva, com quem ninguém se importava.
Mas ela não voltou, nem nesse dia nem no outro a seguir. Embora de cada vez que a porta se abria nós quase gritássemos, com medo de que fosse ela.
Não era, e aparentemente não se dava pela sua falta, porque ninguém notou a sua ausência nem perguntou por nada.
Só ao terceiro dia a notícia saiu no jornal. Foi a Carina que ouviu no café, e veio contar:
Vocês sabem, a Tânia. Apareceu morta.
Saímos logo e fomos para casa, respirando de alívio . Amanhã vão saber que fomos nós. Hoje ainda, talvez. Ficou o casaco e a mochila. Basta seguirem a pista e vão-nos descobrir.
Mas podiam vir, estávamos preparadas. Tinhamos emagrecido, comprado roupa nova, mudado a cor do baton e escolhido outra sombra para os olhos, que não nos íamos esquecer de abrir o mais possível, debaixo da luz dos flashes.
E então foi tudo como tínhamos pensado: de repente eles aí estavam, carros, altifalantes, luzes, locutores, polícia, fotógrafos, páginas de jornais com grandes letras: Adolescentes Matam Colega . Malefícios dos Mídia. Juventude à Deriva. Ausência de Valores. Falência da Escola. Onde estavam os Pais?
Tem sido assim, cada vez se fala mais e ninguém está de acordo, todos os dias nos fazem interrogatórios, são ouvidos psicólogos, psiquiatras, professores, pais, colegas, polícias, vizinhos, e há cada vez mais interesse e mais público, porque somos um caso mediático. Exactamente como tínhamos pensado.
Talvez a gente fique algum tempo atrás das grades, numa colónia correccional, continua a dizer a Germana.
Mas nenhuma de nós tem medo nem está preocupada. Temos a certeza de que tudo vai acabar com um belo pôr do sol em Miami.