Perguntas retóricas, sim, mas aliadas a outras figuras, a gradação e o raciocínio, sobretudo [QUINTILIANO, 1836: 105-115; LAUSBERG, 1982(3): 108-109]. Poderia este poema começar pela segunda ou terceira interrogação?... Teríamos, nesse caso, outros poemas, não este.
Este poema é um silogismo ou, pelo menos, um entimema (thymós, «impressão emotiva») [PLEBE & EMANUELE, 1992: 54; cfr. tb. LAUSBERG, 1982(3): 219-221]. Repare-se no final do poema que, apesar da contradição que parece ter com o início, inclusivamente nos aparece marcado pelo conector "pois", que interpretamos, por um lado, com valor de conclusiva e por outro com valor de causal ou explicativa: «Não entristeço, pois. Apenas sou pergunta, / e, sendo eu, me esqueço ao perguntar.»
Repare-se, ainda, na função demiúrgica, de medium, que o poeta assume no poema, como porta-voz da "tribo". Quem fala não sou eu: a minha voz é a voz daqueles que não têm voz, é o que, parafraseando, ele diz, como o poema o diz. A propósito:
«Nos anos 80, o protagonismo do texto invadiu a própria filosofia. Hoje vai abrindo a idéia de uma textualidade geral que diz respeito em igual medi-da tanto à literatura quanto à filosofia, de modo que as técnicas e os artifícios textuais da primeira não diferem, em substância, das técnicas e dos artifícios da segunda.(...)
Mas, se o texto se coloca hoje como diafragma entre a arte de escrever e a arte de pensar, então o rhétoricien moderno não pende mais nem para o lado dos artifícios estéticos, nem para o das con-cepções filosóficas: ele pode surgir como o moderno demiurgo intelectual, que conhece a arte mais essencial, a de manipular o texto. Nesse sen-tido, ele tem um pé numa estética criadora (...) e outro numa filosofia não metafísica: de um lado é perito em signos literários, de outro em seus con-teúdos filosóficos.» [PLEBE & EMANUELE, 1992: 184]
Por isso, os autores desta citação (professores de Filosofia em universidades italianas) terminam o seu livro dizendo: «Há estética e há filosofia onde o texto se presta a ser manipulado retoricamente», em vez da frase com que Max Bense abre o seu Kleine Texttheorie [1969]: «Há poesia onde palavras diferentes se encontram pela primeira vez.» [Id.: 186]
Mas o poema «Tendo lido uma carta...» revela também dois aspectos, tidos hoje como característicos da arte literária contemporânea:
o apagamento e o distanciamento do sujeito poético em relação ao seu próprio produto estético e, em consequência, a defesa da autonomia desse objecto, atitude que deve ser praticada também pela crítica, simbolizada aqui pelo eventual autor da carta.
Voltemos às interrogações de Sena. Desta vez, com o poema
EPÍGRAFE PARA A ARTE DE FURTAR
Roubam-me Deus,
outros o Diabo
quem cantarei?
roubam-me a Pátria;
e a Humanidade
outros ma roubam
quem cantarei?
sempre há quem roube
quem eu deseje;
e de mim mesmo
todos me roubam
quem cantarei?
roubam-me a voz
quando me calo,
ou o silêncio
mesmo se falo
aqui delrei!»
[SENA, 1988(2): 17]
Uma interrogativa parcial, três vezes repetida, como refrão, no final das três primeiras estrofes. Estrofes também elas gradativamente constituídas por dois, três e quatro versos. Gradativamente também a nível de conceitos, Verticalmente colocados
Deus
Diabo
Pátria
Humanidade
Amor(?)
Voz
Silêncio
O poeta só pede socorro, isto é, só deixará de cantar quando lhe roubarem o próprio silêncio. A liberdade, a todos os níveis, foi sempre a maior luta do poeta. Repete-o frequentemente.
Trata-se de uma pergunta retórica, associada à repetição e à gradação, que aliás faz lembrar outras usadas já pelos trovadores e jograis, nomeadamente satíricos. Mas o seu valor é sobretudo irónico, também pelo jogo que constrói e mantém, pelo inesperado do final. Final tanto mais inesperado quanto do ritmo criado pela repetição do refrão interrogativo, três vezes repetido, se esperaria que continuasse. Não continua e em sua substituição surge uma exclamativa, o grito de socorro e de revolta, que não deixa de ser interrogante, inquietante, incómodo. Prestemos atenção à curva melódica e aos fonemas que constituem os lexemas do refrão, nas duas realizações. Não se fica com a sensação de um toque a rebate crescente?...
Será necessário lermos mais poemas de Sena para nos apercebermos da importância da interrogação na sua poesia, aos vários níveis em que ela se concretiza?...
Gostaríamos, porém, de ler, apenas ler, pelas interrogações que contém, pela reflexões que propõe sobre a interrogatividade da arte, pela importância que a música teve na aparição da poesia a Sena.
OUVINDO O QUARTETO OP. 131, DE BEETHOVEN
A música é, diz-se, o indizível
por ser de inexprimível sentimento
da consciência, ou um estado de alma,
ou uma amargura tão extrema e lúcida
que passa das palavras para ser
apenas o ritmo e os sons e os timbres
só pelos músicos cientes de harmonia
e de composição imaginados. Mas,
se assim fosse, eles só dos homens
saberiam mover-se nos espaços
que a humanidade abandonada encontra
nos desertos de si. Começariam
onde a expressão verbal não se articula
por impossível. Viveriam sempre
na fímbria estreita à beira da maldade
e do absurdo, como que suspensos
na solidão da morte sem palavras.
Não é, portanto, a música o limite
ilimitado dos limites da linguagem,
para dizer-se o que não é dizível.
Mas, se não é, que dizem lancinates,
neste discreto passeio pelo tempo,
os quatro instrumentos semelhantes
no seu modo de criarem som?
Tão terrível. Sufocante. Doce
ou agridoce desconcerto harmónico.
Que diz? Que diz? Neste contínuo
de temas e andamentos, de tonalidades,
o que se justifica? Que discutem eles?
A sua mesma natureza de instrumentos
e as combinações até ao infinito
de um mecanismo abstracto do imaginar?
Como pode uma coisa que sentimos tão medonha,
tão visionariamente séria e pensativa,
ser irresponsável?
Será que nos diz do aquém, do abaixo,
do infra, do primário, do barbárico,
do animal sem alma e sem razão?
Será que todo este rigor tão belo
é como que a estrutura prévia
de que existimos ao pensar as coisas?
E não a quintessência depurada
de uma estrutura que se consentiu
todo o significar a que as palavras vieram
da analogia nominal e mágica
até à consciência dos universais?
Não há tristeza alguma nesta
vida transformada em puro som,
em homogénea outra realidade?
Não é de angústia este rasgar melódico
da consciência antes de criar-se humana?
De que, portanto, vem este triunfo
que se precipita, contraditório, nas arcadas
dos instrumentos conversando essências?
É simples convenção? É artifício?
Silêncio irresponsável?
Se há mistério na grandeza ignota,
e se há grandeza em se criar mistério,
esta música existe para perguntá-lo.
E porque se interroga e não a nós,
ela se justifica e justifica
o próprio interrogar com que se afirma
não quintessência ela, mas raiz profunda
daquilo que será provável ou possível
como consciência, quando houver palavras
ou quando puramente inúteis forem.
SENA, 1988(2): 181-182
Bibliografia
- AA. VV., 1981: Studies on Jorge de Sena. Santa Barbara: Bandanna Books.
- DUCROT, O., 1984(a): «Pressuposição e Alusão», in AA. VV., 1984: Linguagem-Enunciação. Enciclopédia Einaudi, vol 2. Lisboa IN-CM; pp. 394-457 (Trad. Do art. De Henriqueta Costa Campos).
- 1984(b): «Actos linguísticos», in AA. VV., 1984: Linguagem-Enunciação. Enciclopédia Einaudi, vol 2. Lisboa IN-CM; pp. 439-457 (Trad. Do art. De Henriqueta Costa Campos).
- KERBRATORECCHIONI, C., 1986(2): L’implicite. Paris. Armand Colin.
- LAUSBERG, H., 1982(3) (1967): Elementos de Retórica Literária. Lisboa: Gulbenkian (Trad. de R. M. Rosado Fernandes).
- MATEUS, M H.M e tal, 1989(2): Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Caminho.
- MENDES, J., 1970: «Interrogação», in VER-BO-Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura, vol 10. Lisboa: Verbo.
- MEYER, M., 1993: Questions de Rhétoriques. Langage, Raison et Séduction. Paris: Librairie Générale Française (Le Vive de Poche).
- MORNA, F. F., 1985: Poesia de Jorge de Sena. Lisboa: Comunicação.
- PLEBE, A. & EMANUELE, P., 1992 (1989): Manual da Retórica. São Paulo: Martins Fontes (Trad. de Eduardo Brandão, revista por Neide Luzia de Rezende).
- QUINTILIANO, 1836: Instituições Oratórias. Coimbra (Trad. e notas de Jeronymo Soares Barbosa).
- SENA, J. 1977(2): Poesia I. Lisboa: Moraes.
- 1988(2): Poesia II. Lisboa: Edições 70.
- 1989(2): Poesia III. Lisboa: Edições 70.