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Número 1 e 2


por David Rodrigues (pp. 21-27)

Por que pergunto, se já sei por quê?
SENA, 1977(2): 210

O recurso à interrogação é uma constante na poesia de Jorge de Sena. Raro é o poema em que o poeta não apresenta, pelo menos, uma realização interrogativa, não faltando poemas totalmente constituídos, construídos, por uma sequência de interrogações. O próprio Jorge de Sena, sempre leitor e crítico atento também da sua arte poética, o afirma:

[…] acontece que o homem – se pode viver e criar abstracções – é pelo rosto e pelos seus gestos, e pelo que ele, com o olhar transfigura, que pode-mos, interrogativamente, incertamente, inquieta-mente, angustiadamente, conhecer-lhe a vida. E, se não fora a poesia, olhando a História, nenhuma vida em verdade conheceríamos, nem a nossa própria. (SENA, 1988(2): 157. Sublinhado nosso.)
Ou, então, no poema
“DIZ-ME SILÊNCIO…”
 
“Diz-me, silêncio, em ruídos permanentes 
singelamente confusos primitivos - 
que mão estender à voz que ouvida não 
fala comigo ou com ninguém, silente: 
Devo tocar como quem chama e pede? 
Ou agarrar o que não fala ainda 
senão por gestos quase imperceptíveis? 
Esperarei perguntas sem resposta? 
Responderei perguntas não faladas? 
Diz-me, silêncio, em ruídos de que és feito, 
como entender-te quando és corpo humano?.”
[SENA, 1989(2): 217]
 
 
E no IV soneto da “Heptarquia do Mundo Ocidental”, que continua os três sonetos anteriores, todos eles marcados também por várias interrogativas, onde a própria construção e organização do poema é já de si reveladora do espírito inquieto, interrogativo, angustiado e dialéctico do poeta.
 
«Mas que se trai traindo? Que traís
quando trocais por nada o nada que é
ser-se fiel ao que passou por nós?
A mim traís? A vós? Aos nomes falsos
 
em que se oculta o roubo do existir?
E que passou? Que não passou? Que foi
roubado ou não roubado a cada instante?
Traís a cada instante? Que traís?
 
Fiel eu serei sempre a uma resposta.
Mas, respondendo, tendo estas palavras
que negam outras como quem se nega
 
a não negar senão o que não tem,
responderei àquilo que pergunto.
E sei que sou fiel não perguntando.»
[SENA, 1989(2): 41]

No campo da chamada «retórica dos conflitos», como no campo da chamada «retórica das paixões»,
[…] fazer uma pergunta para a qual já se sabe que não há possibilidades de opção entre responder afirmativa ou negativamente, já que a própria formulação do problema prefigura uma das suas respostas (ou exclui ambas), é o artifício que recebe o nome de pergunta retórica. [PLEBE & EMANUELE, 1992: 63].
O facto, porém, de não exigir uma resposta, não quer dizer que ela não afecte tanto aquele que a formula, como aquele que a recebe e reformula, ainda que em níveis e graus diferentes. É o velho problema retórico do ethos, centrado no orador, e do pathos, centrado no auditório. No meio fica o logos, o discurso, meio que é o meio que reúne, ou afasta, os interlocutores. Porque uma outra característica da pergunta retórica é a de ela ser formulada «com fins argumentativos ou como expressão da avaliação que o LOC faz de um determinado estado de coisas.» [MATEUS e tal., 1989(2): 238]

Em termos mais literários, como figura de pen-samento e ornato frásico, terá sido Quintiliano (séc. I) o seu primeiro teorizador. O autor das Instituições Oratórias diz que há interrogatio (os gregos chamavam-lhe erótema, para a distinguir do próblema; este formulava-se para ser resolvido, ou seja, obter uma resposta; aquele não necessariamente), há figura de interrogação, «quando se fizer, não para saber alguma cousa, mas para instar, e intimar mais o que se diz». E o retórico romano dá como exemplo, entre outros, o célebre «Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?». E comenta, retoricamente interrogando: «Porque quanto mais fogo tem isto, dito deste modo, do que se dissesse-mos? Ha muito tempo que abuzas da nossa paciencia.» E Jerónimo Soares Barbosa, autor da tradução das Instituições que consultamos, comenta, em nota, que as interrogações «são figuradas» quando «tem ficção. O orador não he ignorante do que pergunta, mas finge-se tal para dar mais fogo, e acção ao pensamento.» [QUINTILIANO, 1836: 186-187, e 186, nota (e)]

Lausberg, que sistematiza, em Elementos de Retórica Literária, os aspectos essenciais da retórica clássica, refere, baseado no Górgias de Platão, que a pergunta retórica.
«[...] fustiga os afectos, por meio da evidência de que é desnecessária uma formulação interrogativa. Por isso, não se espera uma resposta a essa pergunta, pois que ela é, já por si, a formulação próxima da exclamatio, de uma afirmação.» [LAUSBERG, 1982(3): 259]
Tradicionalmente, e resumindo, a interrogação retórica literária é entendida como uma «figura de paixão que consiste em interpelar o leitor ou o ouvinte, dando àquilo que é, de si, afirmativo uma forma de pergunta.» Por isso, «o leitor é provocado e levado a dar, no seu íntimo, uma resposta de assentimento ao que se lhe propõe.» E «quando as I[nterrogações] se sucedem, i. é, quando a I[interrogação] se combina com a repetição e a gradação, o efeito exprime, ainda com mais urgência, a intensidade da paixão.» Além disso, é considerada como «a figura rítmica mais importante do estilo coloquial e do estilo patético», servindo para dar «relevo e interesse ao que se escreve ou se diz.» [Cfr. Mendes, 1970]
 
É pelo facto das interrogações retóricas dispensarem resposta que se diz que elas ocorrem sobretudo em contextos (o contexto, real ou fictício, é sempre indispensável à sua concretização), onde os destinatários não têm voz activa. Daí que elas não sejam tão inocentes como por vezes se pensa, inclusive as literais. Repare-se nesta advertência de Ducrot:
«[...] tendo o ar de respeitar a liberdade do destinatário, ela [a interrogação, evidentemente] pode, no entanto, impor-lhe ideias prévias. Particularidade esta que torna suspeitas numerosas "sondagens de opinião", e que leva a desconfiar também da "pedagogia interrogativa" de inspiração socrática. Porque as perguntas do professor afirmarão geralmente tanto quanto perguntam. Daí os limites da "maiêutica", parto que pode ter certas características de inseminação.» [DUCROT, 1984ª: 401]
Falámos acima na ausência de voz, voz que a interrogação retórica uma vezes substitui, outras abafará. E a voz leva-nos, de novo, à poesia de Sena, mais precisamente àquele poema de onde retirámos o verso que tomámos como epígrafe deste estudo. Poema já referido, também, no início deste trabalho, na citação de Fátima Morna, e que a seguir se apresenta na integridade de título e texto:
TENDO LIDO UMA CARTA ACERCA DE UM SEU LIVRO DE POEMAS, QUE OFERECERA

Por que entristeço ao ler o que de meus
versos escrevem se não é de mim
que escrevem?
Será que chora em mim o que meus versos foram
antes de ser meus?
Por que pergunto, se já sei por quê?
 
Escuto longamente, leio, espero,
e o poema é voz de toda a gente, todos eles, que,
não se tendo ouvido, não a sabem sua.
E vêm chorar em mim o coração traído,
a música perdida em distracções urgentes,
umas palavras que ninguém falou.
 
Não entristeço, pois. Apenas sou pergunta,
e, sendo eu, me esqueço ao perguntar.»
[SENA, 1977(2): 210]

A vários títulos nos parece importante este poema de Sena. Foquem-se alguns. Comecemos pelas interrogações. São três, e seguidas, e iniciam o poema. O poema nasce sob o signo da interrogatividade. Um problema apoquenta, aparentemente, o poeta.
 
A primeira é constituída por três versos, a segunda por dois, a terceira por um. Que nos dirá esta organização vérsica? Em primeiro lugar, que há uma gradação a nível da forma. Havê-la-á também a nível do conteúdo?
 
A primeira interrogação é a verificação de um facto, de um estado de espírito: o poeta fica triste, porque escrevem acerca dos seus versos e não acerca dele, poeta.
 
A segunda é a razão/reconhecimento desse facto: o que chora no poeta é aquilo que os seus versos foram antes de serem dele.
 
Para quê, então, a terceira pergunta (que como retórica definição de pergunta retórica se pode entender)? Para chegar às causas e à explicação última do ser poeta. É o que dizem a segunda e a terceira estrofes.
Perguntas retóricas, sim, mas aliadas a outras figuras, a gradação e o raciocínio, sobretudo [QUINTILIANO, 1836: 105-115; LAUSBERG, 1982(3): 108-109]. Poderia este poema começar pela segunda ou terceira interrogação?... Teríamos, nesse caso, outros poemas, não este.
 
Este poema é um silogismo ou, pelo menos, um entimema (thymós, «impressão emotiva») [PLEBE & EMANUELE, 1992: 54; cfr. tb. LAUSBERG, 1982(3): 219-221]. Repare-se no final do poema que, apesar da contradição que parece ter com o início, inclusivamente nos aparece marcado pelo conector "pois", que interpretamos, por um lado, com valor de conclusiva e por outro com valor de causal ou explicativa: «Não entristeço, pois. Apenas sou pergunta, / e, sendo eu, me esqueço ao perguntar.»

Repare-se, ainda, na função demiúrgica, de medium, que o poeta assume no poema, como porta-voz da "tribo". Quem fala não sou eu: a minha voz é a voz daqueles que não têm voz, é o que, parafraseando, ele diz, como o poema o diz. A propósito:
«Nos anos 80, o protagonismo do texto invadiu a própria filosofia. Hoje vai abrindo a idéia de uma textualidade geral que diz respeito em igual medi-da tanto à literatura quanto à filosofia, de modo que as técnicas e os artifícios textuais da primeira não diferem, em substância, das técnicas e dos artifícios da segunda.(...)
 
Mas, se o texto se coloca hoje como diafragma entre a arte de escrever e a arte de pensar, então o rhétoricien moderno não pende mais nem para o lado dos artifícios estéticos, nem para o das con-cepções filosóficas: ele pode surgir como o moderno demiurgo intelectual, que conhece a arte mais essencial, a de manipular o texto. Nesse sen-tido, ele tem um pé numa estética criadora (...) e outro numa filosofia não metafísica: de um lado é perito em signos literários, de outro em seus con-teúdos filosóficos.» [PLEBE & EMANUELE, 1992: 184]
Por isso, os autores desta citação (professores de Filosofia em universidades italianas) terminam o seu livro dizendo: «Há estética e há filosofia onde o texto se presta a ser manipulado retoricamente», em vez da frase com que Max Bense abre o seu Kleine Texttheorie [1969]: «Há poesia onde palavras diferentes se encontram pela primeira vez.» [Id.: 186]
 
Mas o poema «Tendo lido uma carta...» revela também dois aspectos, tidos hoje como característicos da arte literária contemporânea:
 
o apagamento e o distanciamento do sujeito poético em relação ao seu próprio produto estético e, em consequência, a defesa da autonomia desse objecto, atitude que deve ser praticada também pela crítica, simbolizada aqui pelo eventual autor da carta.
 
Voltemos às interrogações de Sena. Desta vez, com o poema
EPÍGRAFE PARA A ARTE DE FURTAR

Roubam-me Deus,
outros o Diabo
quem cantarei?

roubam-me a Pátria;
e a Humanidade
outros ma roubam
quem cantarei?

sempre há quem roube
quem eu deseje;
e de mim mesmo
todos me roubam
quem cantarei?

roubam-me a voz
quando me calo, 
ou o silêncio
mesmo se falo
aqui delrei!»
[SENA, 1988(2): 17]
 
Uma interrogativa parcial, três vezes repetida, como refrão, no final das três primeiras estrofes. Estrofes também elas gradativamente constituídas por dois, três e quatro versos. Gradativamente também a nível de conceitos, Verticalmente colocados
 
 
Deus
Diabo
Pátria
Humanidade
Amor(?)
Voz
Silêncio
 
 
O poeta só pede socorro, isto é, só deixará de cantar quando lhe roubarem o próprio silêncio. A liberdade, a todos os níveis, foi sempre a maior luta do poeta. Repete-o frequentemente.
 
Trata-se de uma pergunta retórica, associada à repetição e à gradação, que aliás faz lembrar outras usadas já pelos trovadores e jograis, nomeadamente satíricos. Mas o seu valor é sobretudo irónico, também pelo jogo que constrói e mantém, pelo inesperado do final. Final tanto mais inesperado quanto do ritmo criado pela repetição do refrão interrogativo, três vezes repetido, se esperaria que continuasse. Não continua e em sua substituição surge uma exclamativa, o grito de socorro e de revolta, que não deixa de ser interrogante, inquietante, incómodo. Prestemos atenção à curva melódica e aos fonemas que constituem os lexemas do refrão, nas duas realizações. Não se fica com a sensação de um toque a rebate crescente?...

Será necessário lermos mais poemas de Sena para nos apercebermos da importância da interrogação na sua poesia, aos vários níveis em que ela se concretiza?...

Gostaríamos, porém, de ler, apenas ler, pelas interrogações que contém, pela reflexões que propõe sobre a interrogatividade da arte, pela importância que a música teve na aparição da poesia a Sena.
OUVINDO O QUARTETO OP. 131, DE BEETHOVEN
 
A música é, diz-se, o indizível
por ser de inexprimível sentimento
da consciência, ou um estado de alma,
ou uma amargura tão extrema e lúcida
que passa das palavras para ser
apenas o ritmo e os sons e os timbres
só pelos músicos cientes de harmonia
e de composição imaginados. Mas,
se assim fosse, eles só dos homens
saberiam mover-se nos espaços
que a humanidade abandonada encontra
nos desertos de si. Começariam
onde a expressão verbal não se articula
por impossível. Viveriam sempre
na fímbria estreita à beira da maldade
e do absurdo, como que suspensos
na solidão da morte sem palavras.
Não é, portanto, a música o limite
ilimitado dos limites da linguagem,
para dizer-se o que não é dizível.
 
Mas, se não é, que dizem lancinates,
neste discreto passeio pelo tempo,
os quatro instrumentos semelhantes
no seu modo de criarem som?
Tão terrível. Sufocante. Doce
ou agridoce desconcerto harmónico.
Que diz? Que diz? Neste contínuo
de temas e andamentos, de tonalidades,
o que se justifica? Que discutem eles?
A sua mesma natureza de instrumentos
e as combinações até ao infinito
de um mecanismo abstracto do imaginar?
Como pode uma coisa que sentimos tão medonha,
tão visionariamente séria e pensativa,
ser irresponsável?
 
Será que nos diz do aquém, do abaixo,
do infra, do primário, do barbárico,
do animal sem alma e sem razão?
Será que todo este rigor tão belo
é como que a estrutura prévia
de que existimos ao pensar as coisas?
E não a quintessência depurada
de uma estrutura que se consentiu
todo o significar a que as palavras vieram
da analogia nominal e mágica
 
até à consciência dos universais?
Não há tristeza alguma nesta
vida transformada em puro som,
em homogénea outra realidade?
Não é de angústia este rasgar melódico
da consciência antes de criar-se humana?
 
De que, portanto, vem este triunfo
que se precipita, contraditório, nas arcadas
dos instrumentos conversando essências?
É simples convenção? É artifício?
Silêncio irresponsável?
 
Se há mistério na grandeza ignota,
e se há grandeza em se criar mistério,
esta música existe para perguntá-lo.
E porque se interroga e não a nós,
ela se justifica e justifica
o próprio interrogar com que se afirma
não quintessência ela, mas raiz profunda
daquilo que será provável ou possível
como consciência, quando houver palavras
ou quando puramente inúteis forem.
SENA, 1988(2): 181-182

Bibliografia

  • AA. VV., 1981: Studies on Jorge de Sena. Santa Barbara: Bandanna Books.
  • DUCROT, O., 1984(a): «Pressuposição e Alusão», in AA. VV., 1984: Linguagem-Enunciação. Enciclopédia Einaudi, vol 2. Lisboa IN-CM; pp. 394-457 (Trad. Do art. De Henriqueta Costa Campos).
  • 1984(b): «Actos linguísticos», in AA. VV., 1984: Linguagem-Enunciação. Enciclopédia Einaudi, vol 2. Lisboa IN-CM; pp. 439-457 (Trad. Do art. De Henriqueta Costa Campos).
  • KERBRATORECCHIONI, C., 1986(2): L’implicite. Paris. Armand Colin.
  • LAUSBERG, H., 1982(3) (1967): Elementos de Retórica Literária. Lisboa: Gulbenkian (Trad. de R. M. Rosado Fernandes).
  • MATEUS, M H.M e tal, 1989(2): Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Caminho.
  • MENDES, J., 1970: «Interrogação», in VER-BO-Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura, vol 10. Lisboa: Verbo.
  • MEYER, M., 1993: Questions de Rhétoriques. Langage, Raison et Séduction. Paris: Librairie Générale Française (Le Vive de Poche).
  • MORNA, F. F., 1985: Poesia de Jorge de Sena. Lisboa: Comunicação.
  • PLEBE, A. & EMANUELE, P., 1992 (1989): Manual da Retórica. São Paulo: Martins Fontes (Trad. de Eduardo Brandão, revista por Neide Luzia de Rezende).
  • QUINTILIANO, 1836: Instituições Oratórias. Coimbra (Trad. e notas de Jeronymo Soares Barbosa).
  • SENA, J.  1977(2): Poesia I. Lisboa: Moraes.
  • 1988(2): Poesia II. Lisboa: Edições 70.
  • 1989(2): Poesia III. Lisboa: Edições 70.
Ċ
CCAM,
09/02/2012, 08:31