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4 poemas

por José Viale Moutinho (pp. 51-56)

ELEGIA DE UMA TARDE DE SÁBADO

1

esta tarde de sábado é a pior
das tardes de sábado.
acabei de escrever um outro nome
no reverso da terra, o teu nome,
e o pó das palavras escorrega,
lentamente escorrega,
na ampulheta.
doem-me estes olhos de tanto 
os fixar nos jornais antigos.
é a letra miúda, oca, negra,

onde tudo se diz, arma
e se disfarça,
que fode quase tudo:

as asas deste anjo que sou
são de pau, papel e cera velha,
os braços e as pernas
como canas da índia mal descoberta,
as grilhetas de um fraco metal
transformado da escória
apanhada a eito nas escombreiras 
da serra de santa justa.

2

eis a ilha mal desenhada,
eis o penedo do sul com a espada
cravada por um rei perdido
em lendas de guerras africanas:
a tempestade turva 
a limpidez das águas próximas,
as nuvens, as negras nuvens
que pairam sobre mim, 
em março, como hoje,
acabam por afastar-se,

e agora penetro no jardim proibido,
onde estão todas as fontes da cidade,
sem água, sem mágoa,
silenciosas cúmplices dos jovens amantes
entre os arbustos. afinal,
que me importa a ilha,
esta ilha,
as suas líricas gaivotas:
é que o ogre lá está
devorando os pequenos ogres
e o resto,
mesmo esse teu nome 
e os teus manuscritos abandonados.

3

caminhando, solitário caminhar o meu,
olhando o rio,
os muros que se erguem do lado de cá
do rosto,
mal anoto a primavera,
a estação dos derradeiros comboios.
sábado? sábado?
revolvo-me no sofá,
escondido da luz coada da tarde.

é uma arde de merda, já disse,
em que deveria estar 
diante de um espelho,
e de um velasquez,
os dedos do pianista mal tocando as teclas:
as variações goldberg são 
um tributo de bach
para que o silêncio seja mais harmonioso.
harmonioso?
aproximas as tuas mãos das minhas,

este sábado é a entrada 
de um velho museu de história natural,
pálido e com algum pó

4

as  minhas fontes, 
na verdade,
não são versos nem multidões,
nem fantasmas, 
nem música,
proscrito dos mares e do areal;
elas afundam-se numa tarde de Sábado,
submergem na água de lavar 
a louça da semana,
e ainda na verdade,
esse homem que atravessa a sala
e penetrra na parede do quarto de dormir
não é fernando pessoa,
quem diria?

trata-se de
joão roiz de castelo branco:
partem tão tristes os tristes,
infelizmente nasci com a pátria 
bem doente
e um amargo sorriso afivelado:
poe, penha, pessanha,
guilevic, éluard,
machado,
e uns versos perdidos dos seus poetas,
talvez demasiadas prosas sem teatro.

5

abro as mãos 
diante do espelho do quarto de banho:
abro a boca
e mostro as línguas a mim mesmo,
tenho bolhas de medo
e riscos de nascença nas mãos,
mais manchas de veneno nas línguas,
o espelho embacia-se,
a água da torneira é acastanhada,
o telefone toca e é engano,
mas de novo digo que
esta tarde de sábado é uma merda,

de olhos postos em mim,
de um bolso da camisa tiro
o papelinho do mapa das fontes da ilha onde nasci,
de outro bolso um belo cd-rom
com as raízes de quem sou,
a crónica genealógica deste sangue perdido,
deste pó conduzido entre os vasos da ampulheta.
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ENTRE MÁSCARAS

 1

 depressa, depressa, esconde-te
 entre os lábios,
 na curva da língua,
 palavra,
 à entrada do pão, no dedo
 que procura a espinha;
 maldita palavra, depressa,
 há um ouvido à tua espera,
 um ouvido de pedra e cristais de silêncios vários,
esconde-te,
mesmo na concha da mão;

2

conheci-lhe o vulto envolto
na nuvem de uma tempestade antiga,
abri os olhos como aquele relâmpago
da noite em que me perdera,
abri a boca 
e senti a chuva nos dentes,
essa música oculta, 
esse desdizer,
e atraí o vulto envolto
como quem atraiçoa as árvores;

3

mentes, sempre mentiste,
sem saber como: mentias.

a navalha que te corta os lábios
é uma folha de papel mágico,
uma onda fina entre
uma e outra mentira,

uma folha de registo de mentiras,
uma asa cortada à tesoura;

mentes, sempre acreditaste
no fio das lâminas,
nesse insuportável sinal
no canto da boca.
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AUSÊNCIAS

acenando com a humidade do lenço,
os olhos que importam,
em silêncios imperdoáveis,
como lábios que procuram
a boca onde se escondem as palavras
de um amor evasivo,
como o vidro embaciado da janela do medo,

e vou deslizando a língua, a negra língua,
pelos teus seios,
deitado na doçura fechada do teu ventre:
a flecha que se despede em clara seiva
como se amorosamente nos despíssemos.

são estes os dizeres do meu signo
na revista de actualidades televisivas?
é este o texto?
pois merda para quem faz
os horóscopos nesta revista!
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JÁ NINGUÉM CANTA

então, já ninguém canta?
o sol aproxima-se
dos seus próprios limites,
os cães erguem
os dentes às sombras mais altas.
e a morte
metida na gaveta chama
as últimas sombras;

mas, como é domingo,
a manhã do último
domingo da estação,
possivelmente estou
a falar do outono,
saí a passear os olhos
mortos pelas paredes
do castelo de duíno;

então, a voz pode perder-se
sem um soluço?
a lâmina não fere o globo ocular
do silêncio
do homem velho a arrumar
as giestas lunares?
são estas as ruas da cidade?
claro, são estas

as ruas da cidade,
as lojas estão fechadas
e o medo é vendido
nos panos estendidos,

aí há ainda elefantes e leões
de madeiras exóticas,
amuletos contra o medo,
sedas próprias para
putas invejosas:
eis as suas vozes,

possessas,
acreditam
em qualquer coisa:
nos tais limites
do sol que excita os cães,
nesses nigerianos
acocorados na praça da liberdade,
vendendo;
 
trata-se de um Domingo
à tarde,
já perceberam,
um entardecer tão vil
que o quero esquecer,
por isso invoco as sombras
e as suas páginas
e rogo aos deuses
que nos entretenham
com os medos,
que incendeiem o teatro natural
do gesto,
o museu individual das paixões
de asas abertas,

sabem como se faz
um programa de televisão?

sabem quem se esqueceu
de um romance de camus no café?
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Porto: Setembro – Novembro de 1996