ELEGIA DE UMA TARDE DE SÁBADO
1
esta tarde de sábado é a pior
das tardes de sábado.
acabei de escrever um outro nome
no reverso da terra, o teu nome,
e o pó das palavras escorrega,
lentamente escorrega,
na ampulheta.
doem-me estes olhos de tanto
os fixar nos jornais antigos.
é a letra miúda, oca, negra,
onde tudo se diz, arma
e se disfarça,
que fode quase tudo:
as asas deste anjo que sou
são de pau, papel e cera velha,
os braços e as pernas
como canas da índia mal descoberta,
as grilhetas de um fraco metal
transformado da escória
apanhada a eito nas escombreiras
da serra de santa justa.
2
eis a ilha mal desenhada,
eis o penedo do sul com a espada
cravada por um rei perdido
em lendas de guerras africanas:
a tempestade turva
a limpidez das águas próximas,
as nuvens, as negras nuvens
que pairam sobre mim,
em março, como hoje,
acabam por afastar-se,
e agora penetro no jardim proibido,
onde estão todas as fontes da cidade,
sem água, sem mágoa,
silenciosas cúmplices dos jovens amantes
entre os arbustos. afinal,
que me importa a ilha,
esta ilha,
as suas líricas gaivotas:
é que o ogre lá está
devorando os pequenos ogres
e o resto,
mesmo esse teu nome
e os teus manuscritos abandonados.
3
caminhando, solitário caminhar o meu,
olhando o rio,
os muros que se erguem do lado de cá
do rosto,
mal anoto a primavera,
a estação dos derradeiros comboios.
sábado? sábado?
revolvo-me no sofá,
escondido da luz coada da tarde.
é uma arde de merda, já disse,
em que deveria estar
diante de um espelho,
e de um velasquez,
os dedos do pianista mal tocando as teclas:
as variações goldberg são
um tributo de bach
para que o silêncio seja mais harmonioso.
harmonioso?
aproximas as tuas mãos das minhas,
este sábado é a entrada
de um velho museu de história natural,
pálido e com algum pó
4
as minhas fontes,
na verdade,
não são versos nem multidões,
nem fantasmas,
nem música,
proscrito dos mares e do areal;
elas afundam-se numa tarde de Sábado,
submergem na água de lavar
a louça da semana,
e ainda na verdade,
esse homem que atravessa a sala
e penetrra na parede do quarto de dormir
não é fernando pessoa,
quem diria?
trata-se de
joão roiz de castelo branco:
partem tão tristes os tristes,
infelizmente nasci com a pátria
bem doente
e um amargo sorriso afivelado:
poe, penha, pessanha,
guilevic, éluard,
machado,
e uns versos perdidos dos seus poetas,
talvez demasiadas prosas sem teatro.
5
abro as mãos
diante do espelho do quarto de banho:
abro a boca
e mostro as línguas a mim mesmo,
tenho bolhas de medo
e riscos de nascença nas mãos,
mais manchas de veneno nas línguas,
o espelho embacia-se,
a água da torneira é acastanhada,
o telefone toca e é engano,
mas de novo digo que
esta tarde de sábado é uma merda,
de olhos postos em mim,
de um bolso da camisa tiro
o papelinho do mapa das fontes da ilha onde nasci,
de outro bolso um belo cd-rom
com as raízes de quem sou,
a crónica genealógica deste sangue perdido,
deste pó conduzido entre os vasos da ampulheta.
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ENTRE MÁSCARAS
1
depressa, depressa, esconde-te
entre os lábios,
na curva da língua,
palavra,
à entrada do pão, no dedo
que procura a espinha;
maldita palavra, depressa,
há um ouvido à tua espera,
um ouvido de pedra e cristais de silêncios vários,
esconde-te,
mesmo na concha da mão;
2
conheci-lhe o vulto envolto
na nuvem de uma tempestade antiga,
abri os olhos como aquele relâmpago
da noite em que me perdera,
abri a boca
e senti a chuva nos dentes,
essa música oculta,
esse desdizer,
e atraí o vulto envolto
como quem atraiçoa as árvores;
3
mentes, sempre mentiste,
sem saber como: mentias.
a navalha que te corta os lábios
é uma folha de papel mágico,
uma onda fina entre
uma e outra mentira,
uma folha de registo de mentiras,
uma asa cortada à tesoura;
mentes, sempre acreditaste
no fio das lâminas,
nesse insuportável sinal
no canto da boca.
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